TEXTO PUBLICADO NO BLOGUE COMMUNICATION ADVISORY, A 8 DE DEZEMBRO DE 2014:
«Mário Soares não parece ser só o pai da democracia em Portugal. Parece ser o rei dos portugueses»
«Mário Soares não parece ser só o pai da democracia em Portugal. Parece ser o rei dos portugueses»
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, Presidente do Brasil entre 1995 e
2003
Diz-se do
Barcelona que é «muito mais que um clube», tal
a importância que a marca «Barça» adquiriu como forma de afirmação da
Catalunha.
Ora, Mário
Soares será o «Barcelona» da política portuguesa: é muito, muito mais que um
político.
O agora
nonagenário é, verdadeiramente, o pai da democracia representativa, ocidental e
parlamentar em Portugal. Soares é, de longe, a maior figura do Portugal pós-25
de Abril, por ter tido a visão e a capacidade política para travar a ameaça
(que chegou a ser iminente) de cairmos na esfera soviética, em plena Guerra
Fria, nos anos da brasa de 74/75.
São factos.
Devemos-lhe isso.
Já numa
ordem mais subjetiva, considero que foi também o melhor Presidente da República
da democracia portuguesa, precisamente por ter sabido vestir a pele do
«Presidente de todos os portugueses», inaugurando um estilo que Jorge Sampaio
soube (à sua maneira, muito diferente no ponto de vista pessoal, mas na mesma
linha política) de uma «Presidência Aberta», para lá dos corredores do Palácio
de Belém, junto das pessoas, a ouvir as queixas, a sentir o pulso da vida
nacional.
A noção de
que «uma maioria presidencial se esgota na noite da eleição», criada por Soares
e prolongada por Sampaio -- e que na minha opinião Cavaco Silva não tem sabido
interpretar.
Essa maioria
tem que terminar nessa noite, porque o Presidente tem a obrigação de integrar
os 40 e tal por cento que não votaram nele. Mas que passaram a tê-lo como «mais
alto magistrado da nação».
Só com essa
noção se torna possível que o PR seja «de todos», mesmo de quem votou contra
ele.
Mas Mário
Soares está longe de ser consensual.
Nunca o foi,
mesmo nos tempos em que (início da década de 90), obteve mais de 70% dos votos
numa eleição presidencial, fruto do apoio simultâneo de PS e PSD.
Há franjas
da população portuguesa (e nem são assim tão minoritárias) que não lhe perdoam
determinadas decisões políticas em momentos muito concretos da vida portuguesa:
a descolonização, a primeira chegada do FMI, as crises sociais e financeiras
dos anos 80, em fases em que Soares em primeiro-ministro.
Nos anos
mais recentes, a direita política tem-no tratado entre a indignação e a
condescendência, atribuindo à «idade avançada» algumas das declarações mais
encarniçadas do ex-PR contra o «atual governo» e «os malandos da direita». Ou,
ainda mais recentemente, no caso Sócrates, contra «essa malandragem que quis
montar isto».
Estou à
vontade para defender Soares, neste texto.
No dia em
que o agora nonagenário presidente foi visitar o amigo Sócrates ao cárcere de
Évora, escrevi críticas muito contundentes à atitude, às palavras e às
acusações gravíssimas que Soares fez contra «o sistema de justiça», «os
juízes», «a forma como Sócrates foi preso sem ter sido ouvido por nenhum
tribunal (sic)» e até o «recado» que, à entrada do carro, quis dar «àquele
juiz» (Carlos Alexandre), numa deriva lamentável de alguém que se sentiu, por
momentos, com poder para «mandar um recado» a um juiz de um tribunal de
instrução criminal, através dos media.
Ora, o facto
de ter achado que aquelas declarações não respeitam a história e a herança
política de Mário Soares mostra como, na minha opinião, a idade não deve ser um
fator de desculpabilização ou minimização.
Soares
continua em plena atividade intelectual. Continua a ser um «player» do jogo
político em Portugal. E isso é notável.
«Não gosto nada de ter 90 anos», desabafava Soares nos últimos dias. «Penso sempre mais no futuro do que no
passado».
Sempre foi
assim: depois de sair de Belém, foi cabeça de lista do PS às europeias. Quase
todos diziam que era só um nome para dar votos e que ficaria por Bruxelas só
por umas semanas. Nada disso: foi um ativo eurodeputado e cumpriu os cinco
anos.
Discordei da
candidatura presidencial de 2005/2006, mas achei, uma vez mais, notável, que
alguém com na altura 81 anos tivesse estado em condições políticas e pessoais
de ser o candidato oficial do PS.
O péssimo
resultado, quase humilhante (14%, muito atrás de Manuel Alegre, que correu
sozinho e zangado com o amigo; a reconciliação viria anos depois) tinha tudo
para deixar Soares deprimido e concluindo que o seu tempo acabado.
Qual quê:
semanas depois, era vê-lo de novo a escrever, a dar conferências, a incomodar
quem estava nos diferentes poderes.
A isso se
chama carisma. Força. Determinação. Vontade de olhar para a frente e não para
trás.
É isso que
tem faltado à política portuguesa e também por isso Soares é «muito mais que um
político».
«Quisemos sempre todos a
mesma coisa: liberdade, democracia e respeito pelos outros»
MÁRIO SOARES, discurso no almoço do seu 90.º aniversário
Soares é «muito mais do que um político», não apenas pelo
que representou enquanto PR, PM e fundador e líder do PS.
É-o, acima de tudo, pelas características pessoais que tem
e pela forma como sempre encarou a vida.
Alguém, como ele, que abandonou o Palácio de Belém aos 72
anos, depois de dez anos de presidência exemplar, com níveis de popularidade
que provavelmente nunca mais alguém terá na política portuguesa, teria tudo
para se acomodar ao circuito de conferências e homenagens, sem voltar a
aventurar-se em eleições e aos espinhos do jogo político.
Só que Mário Soares é o «animal político» na sua mais pura
essência. Quis sempre ir a jogo, nunca teve medo de dar a cara, de deitar o
corpo às balas.
«Sou o
gajo que lhes atira mais às trombas, por isso é que eles não gostam de mim»,
comentava Soares, na longa entrevista concedida, na semana passada, a Clara
Ferreira Alves, na revista do Expresso.
«Soares é um homem afectivo, sedutor, cheio de
charme e humor, às vezes colérico. E um magnífico contador de histórias,
memorialista, escritor político, leitor voraz de jornais, revistas e livros –
admirador de Camilo, de Eça, de Teixeira Gomes, de Raul Brandão, de José
Rodrigues Miguéis, mas também de Antero, de Cesário, de Pessoa. Faz política
como quem respira. Por isso, nunca desiste de lutar por aquilo em que
acredita.»
ANTÓNIO COSTA, secretário-geral do PS
«Socialista, republicano e
laico», Mário Soares conseguiu sempre despertar simpatias junto de alguns
setores de correntes políticas adversárias.
Só assim se explica a amizade
com Adriano Moreira. Com Freitas do Amaral, seu antigo adversário em corrida
presidencial. Figuras de um certo PSD, como Leonor Beleza, António Capucho ou
Pacheco Pereira já o apontaram como sendo «da mesma família política».
«Homem dos americanos» e
«anti-comunista» no tempo pós 25 de Abril, esteve na linha da frente da
contestação à guerra do Iraque de 2003, censurando Bush, Barroso, Aznar e
Blair.
Esteve, por isso, no lado
certo da História, na maior parte das vezes. Talvez nas decisivas. E a isso se
chama ter «faro político», algo que, indiscutivelmente, Mário Soares sempre
teve.
Nos últimos anos foram muito
mais as vezes que discordei de Soares do que aquelas em que em concordei.
Mesmo preferindo Costa a
Seguro, considero que Soares, como fundador do PS, foi tremendamente injusto na
forma como tratou António José Seguro, esquecendo-se, por exemplo, que também
ele teve que ser líder-do-PS-na-oposição, nos finais de 70 e inícios de 80.
Discordei da forma por vezes
simplista como Soares tem posto tudo no mesmo saco, em relação a este Governo e
discordo sobretudo da urgência com que exige a queda deste executivo, ignorando
uma vez mais a legitimidade do voto popular e das maiorias parlamentares
(conceitos pelos quais tanto lutou).
Mas insisto: a admiração por
Mário Soares não diminuiu um milímetro nos últimos anos.
Há décadas que Soares tem
visto amigos ou conhecidos adoecer, morrer. Há anos que tem visto aumentar
quem, em Portugal, o trata como «um velho irresponsável e impossível de
aturar».
Nem assim desiste. Nem assim
se abala. O sorriso aberto que tinha no almoço dos seus 90 anos disse-nos tudo
sobre o seu estado de espírito e a tal vontade de olhar para o futuro.
«É um homem que contagia. Soares e Liberdade são
dois conceitos que se confundem. Mesmo quando não concordo com o que ele diz, é
um bálsamo ouvi-lo», observou Pedro
Santana Lopes.
«Conheço Mário Soares desde os alvoroços da
minha participação na vida cívica. Os meus atritos com ele nunca beliscaram o
respeito e a amizade mútuos. E, amiúde, os meus artigos no Diário Popular eram
extremamente veementes. Tinha, e ainda tenho, uma esperança imaculada na
mudança do mundo. Esta crença pertence aos domínios da fé, bem sei, e Soares
alimentava outras direcções. Irritei-me, por vezes, com as suas opções, com as
suas extravagantes decisões, com as absurdas amizades que cultivava, como
aquela, com Carlucci, o todo-poderoso senhor da CIA. Ele não alterava o
comportamento e as coisas ficavam como eram»
BAPTISTA BASTOS, jornalista, cronista e escritor, excerto de
«Os 90 anos de Mário Soares», Jornal de Negócios
Podemos achar exagerada ou,
simplesmente, merecida a importância que os media e os políticos portugueses
continuam a dar a Mário Soares (no passado domingo, o «Público» reservou-lhe
quase toda a primeira página, com a manchete «Parabéns, sr. Presidente!», sendo
que nunca fez algo sequer parecido ao atual inquilino do Palácio de Belém...)
Mas dificilmente voltaremos
a conhecer em nossas vidas uma figura com a dimensão histórica e o carisma
pessoal e político de Mário Soares.
Nele, até os defeitos e
exageros parecem ficar bem.
Germano Almeida
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