«A verdade é que ser americano é difícil. Fazer
parte de um governo democrático é difícil. Ser cidadão é difícil. É um desafio.
É suposto que seja assim. Todos nós somos chamados a viver e encarar as nossas
expectativas – não só quando é conveniente, mas também quando é inconveniente.
Quando é duro. Quando
temos medo».
BARACK OBAMA, discurso «American Values» de 15
de dezembro de 2015 nos National Archives, em resposta aos ataques de Donald
Trump à entrada de muçulmanos
«Os Estados Unidos da
América são o país mais poderoso do mundo, ponto final. É que não há a mínima
comparação»
BARACK OBAMA, discurso
Estado da União de 12 de janeiro
A exatamente
um ano de deixar a Casa Branca (a tomada de posse do 45.º Presidente dos EUA
será a 20 de janeiro de 2017), Barack Obama entra hoje, literalmente, na reta
da meta.
O primeiro
negro a chegar ao cargo político mais influente do Mundo é já o Presidente da
recuperação económica, dos 73 meses seguidos a criar emprego, da redução do
défice para dois terços, da criação de um sistema de saúde que já deu cuidados
médicos a 18 milhões de americanos, da aposta nas energias renováveis
(dominantes nas economias de alguns estados americanos), do combate às
alterações climáticas.
Mas também é
o Presidente que falhou a reconciliação (o clima político em Washington é hoje mais
polarizado do que era em 2008), que ainda não fechou Guantánamo, que não chegou
tão longe como queria no «gun control», que não resolveu o impasse no
Congresso, que assume a incapacidade de travar fenómenos como o bizarro avanço
de Donald Trump no polo oposto do campo político e ideológico.
Recusando a
tese que muitos defendem de que, nos anos da sua presidência, a América entrou
em declínio, Barack Obama tem vindo a expor o seu argumento de uns EUA que
continua a assumir-se como a «nação indispensável», ainda que numa versão
diferente, adaptada às mudanças tremendas que o Mundo teve desde a crise
económico-financeira de 2007/2009, precisamente o contexto herdado pelo
Presidente agora a entrar na reta final.
Desconfortado
com o clima que se vive no sistema político americano, e que tem na inesperada
liderança de Donald Trump na corrida à nomeação republicana como o seu exemplo
mais desconcertante (para mais, com Ted Cruz como alternativa mais forte neste
momento), Obama vai tentar aproveitar o último ano para exercer exemplo de
pedagogia, num contraponto com o que Trump representa.
A América
inclusiva, positiva, otimista e confiante (mas também tolerante, diversa,
prudente e atenta aos sinais que vêm do resto do Mundo) é corporizada, em
pleno, pelo Presidente dos EUA – e está a tentar ter como sucessora a favorita
à nomeação presidencial democrata, Hillary Clinton.
A América
zangada, desconfiada, que berra em vez de ouvir e coloca os preconceitos à
frente da abertura ao outro tem Donald Trump, Ted Cruz e uma parte da bancada
republicana ligada ao Tea Party no Congresso como representantes.
Duas
Américas? Pois. Não era isto que Obama, em 2008, sonhava concretizar quando
chegasse à Casa Branca.
Mas uma
lição que este Presidente, agora a entrar no último ano, tem tido (além do
nítido envelhecimento que a sua face e a cor do seu cabelo revelam) é que os
sonhos rapidamente se desvanecem neste tempo de contradições e desafios. E
Obama, o tal candidato da esperança em 2008, revelou-se um Presidente
pragmático e efetivo nos temas essenciais.
O balanço é,
pois, positivo – sobretudo se nos focarmos no aspeto económico e na capacidade
que Obama teve de surpreender em momentos como o acordo com Cuba (absolutamente
inesperado) e mesmo na insistência da contenção nuclear do Irão (que está a ter
efeitos de «gamechanger» na região, também na questão dos preços do petróleo e
no jogo de forças com a Arábia Saudita e Israel).
«Não podemos invadir e
reconstruir todos os países que estão em crise. Isso não prova a nossa
liderança, atira-nos para o charco»
Obama
mostrou no seu último State of The Union que, por muito que seja criticado
pelos republicanos de ter permitido, nos seus sete anos de presidência, que o
poder americano tenha diminuído manterá até ao fim a sua visão pragmática do
que deve ser a liderança dos EUA no mundo.
A forma como
tem lidado com a guerra na Síria não pode ser apontado como um sucesso – mas
nunca se saberá que consequências teriam tido um ataque ao regime de Assad, em
finais de 2013.
Obama não
temeu ter ficado com o lado mais fraco, ao recuar perante a posição de Putin,
mas a verdade é que, um ano depois, liderou uma ampla coligação internacional
que iniciou os ataques aéreos às posições do Daesh.
É certo que,
entretanto, a Rússia entrou na equação (e persistem as dúvidas sobre se Putin
não estará a aproveitar o pretexto do combate ao ISIS para ajudar Assad na luta
contra os opositores do regime alauíta de Damasco), mas a rota de Obama até ao
fim da sua presidência parece, neste ponto, estar traçada: diminuir a ameaça do
ISIS pela via aérea e no apoio aos combatentes que no terreno se opõem ao
Daesh, reduzindo assim a dimensão do território do «califado».
Mas o
essencial da «Doutrina Obama» em relação ao Médio Oriente e às intervenções dos
EUA «overseas» não se altera: o Presidente não se revê na noção de «nation
building» e, consequente com as retiradas do Iraque e do Afeganistão, não
pretende ver os Estados Unidos a ‘derrubar regimes e reconstruir países».
Sinal de
«declínio» ou visão «pragmática»? Depende da perspetiva, pelo menos no azimute da
dicotomia norte-americana da republicanos «vs» democratas.
«Não deixarei de
trabalhar para fechar Guantánamo: é caro, é desnecessário e só serve de
brochura para o recrutamento dos nosso inimigos»
A promessa
de fechar a prisão de Guantánamo (simbolizada ao segundo dia de mandato, em
janeiro de 2009, numa assinatura simbólica sem efeitos legais) tem perseguido
Barack Obama como «exemplo maior» da sua incapacidade de concretizar o que
tinha apontado na primeira campanha presidencial.
O turbilhão
de acontecimentos e prioridades que se seguiram foram diminuindo o espectro –
mas a prisão continua lá, em «Gitmo».
É certo que
há hoje muito menos presos em Guantánamo, mas também é verdade que há um ano, no
State of The Union 2015, Obama já tinha dito que era «tempo de fechar
Guantánamo, porque aquela prisão não é o que nós somos».
Será o fecho
de Guantánamo um dos trunfos finais de Obama para este último ano?
«O mundo não nos
respeita apenas por causa do nosso arsenal, mas por causa da nossa diversidade,
da forma como acolhemos todas as fés»
Esta foi
talvez a mensagem mais forte de Obama no seu último Estado da União.
O Presidente
fez questão de vincar a diferença em relação às posições de Donald Trump e
outros candidatos republicanos sobre as minorias e as supostas ameaças que os
muçulmanos representam.
O sinal
começou a ser dado nos dias anteriores ao State of The Union, quando a Casa
Branca fez saber que o Presidente iria ter como convidados Refaai Hamo, um
refugiado sírio, e ainda um antigo soldado norte-americano muçulmano.
Obama vincou
a sua visão de uma América construída pela diferença, pela integração das minorias,
pelo respeito pelo outro. «É isso que somos. É com isto que crescemos e que nos
identificamos», lançou o Presidente no seu último State of The Union.
Poderá a América
continuar a ter um Presidente assim daqui a um ano? O tema da imigração e dos
refugiados poderá ter na corrida presidencial um peso maior do que se
imaginaria há uns meses, sobretudo se o duelo final for entre Hillary e Trump.
«O lobby das armas pode ter conseguido tomar
o Congresso como refém, mas não conseguiu fazer o mesmo com o povo americano»
O «gun control» pode ter sido uma das
maiores frustrações da era Obama.
Pelo menos do ponto de vista
legislativo, e depois do fracasso da tentativa de Obama em abril/maio de 2013
(as 20 medidas propostas ao Congresso foram estilhaçadas por um Senado que na
altura até tinha maioria democrata), dificilmente o Presidente ainda irá a
tempo de conseguir uma grande conquista perante um Capitólio agora totalmente
republicano.
Mas Obama, ao insistir na tecla do
controlo das armas no seu último Estado da União, mostrou que ainda quer jogar
duas cartas finais num tema que é para ele estrutural: a carta do exemplo e a
carta das medidas unilaterais.
Sobre esta última, o Presidente já
havia mostrado, no final de 2014, em relação à Imigração, que não se deixa
intimidar pelas críticas republicanas de ter «tentações tirânicas». Pelo menos,
nos temas que considera serem decisivos para o seu legado.
Se houve momento que mudou Obama, na
sua forma de se comportar como líder e como Presidente da nação mais poderosa
do mundo, foi o massacre de Newtown, Connecticut, a 4 de dezembro de 2012.
Um mês depois de ter sido reeleito,
uma tragédia numa escola em Sandy Hook fê-lo colocar a questão do controlo das
armas como bandeira para o segundo mandato.
O «gun control» é talvez o melhor
exemplo de como o sistema de poder na América pode levar a situações de impasse
irresolúvel: apesar da legitimidade do Presidente em impor a via da restrição,
o controlo de poderes do Congresso tem mantido impossível a concretização desse
caminho.
A «segunda emenda», mencionada à
exaustão por quem defende o direito a ter armas para assegurar a sua defesa,
está inscrita na Constituição e na génese da sociedade americana – fortemente
influenciada pela NRA e pela ideia de que, perante um poder federal e estadual
«longínquo e dissipado», nada resta que não seja um sistema próprio de defesa.
Mas Obama
não aceita o argumento de que «tirar as armas dos tipos bons não vai diminuir a
ameaça imposta pelas armas dos tipos maus», porque não tem uma visão de «olho
por olho, dente por dente».
Os
republicanos acusam Obama de quererem «retirar as armas de quem já tem direito
a elas», o que é simplesmente falso.
Conseguirá o
Presidente, no seu último ano em funções, reverter decisivamente esta questão
inacabada?
«O futuro que queremos
– oportunidade e segurança para as nossas famílias; uma melhor qualidade de
vida e um planeta mais pacífico e sustentável para os nossos filhos – está ao
nosso alcance. Mas só acontecerá se trabalharmos juntos, se tivermos debates
construtivos e racionais. Podemos discordar. Mas a democracia exige laços de
confiança entre os cidadãos e deixa de funcionar se pessoas sentirem que as
suas vozes não são ouvidas»
No seu
último State of The Union, o 44.º Presidente dos EUA, o primeiro negro e um dos
mais jovens de sempre, juntou uma espécie de confissão de fracasso em relação
ao seu mantra de 2008 “bring the country together” com uma mensagem de
esperança numa réstia de bom senso do americano médio.
A
«reconciliação» que o jovem presidente eleito em 2008 prometia falhou
rotundamente – e ele sabe disso.
Obama
deixará uma América mais dividida, mais polarizada, mais afastada entre o
cosmopolitismo da costa leste e os valores do Midwest e da «Bible Belt».
É que já não
é só uma questão de democratas vs republicanos.
Todo o
fenómeno Trump apanhou de surpresa o «core» republicano. Candidatos mais
clássicos como Jeb Bush passaram, em meses, de favoritos a potenciais
desistentes. Marco Rubio e Chris Christie, possíveis nomeados até há cerca de
um ano, ambos com trunfos atraentes para os media e para uma boa história de
campanha presidencial, não conseguem fazer ouvir a sua voz, perante o domínio
do estilo Trump.
Está a
vigorar uma via «zangada», «radical», por vezes mesmo «irracional», como, de
forma subliminar mas com destinatário claro, o Presidente Obama lançou.
É outra
contradição dos EUA: o mesmo país que elegeu duas vezes um Presidente com
discurso que apela à racionalidade tende, agora, para uma perigosa nomeação
presidencial de alguém com um discurso entre o irresponsável e o surreal, como
Donald Trump.
A exatamente
um ano de abandonar a Casa Branca (o dia da posse do seu sucessor, ou
sucessora…, será 20 de janeiro de 2017), e com o calendário eleitoral para a
sua sucessão a retirar-lhe boa parte do protagonismo, Barack Obama tentou, no
seu último discurso de Estado da União, juntar trunfos de sete anos de
governação que apresentar uma transformação globalmente positiva na economia e
na sociedade americana com um exemplo simbólico, que a partir de agora radica
mais no plano da moral e da pedagogia, já não tanto no campo da luta política e
legislativa.
Sete anos de
Obama: houve muita turbulência nas palavras dos opositores, nos primeiros anos
de governação no plano interno e nas ameaças emergentes a nível externo.
Mas quem for
capaz de completar a tal análise racional pedida pelo Presidente, e que cada
vez menos se dispõem a executar, percebe que o balanço é claramente positivo.
Para quem
pegou nos EUA a caminho de uma Depressão económica só comparável à dos anos 30
do século XX, não é coisa pouca.
Mais de
metade dos americanos não pensa assim – e continuam a reprovar a presidência
Obama.
Mas, como
muito bem notou David Ignatius em artigo no Washington Post, dias depois do
notável discurso de Obama nos National Archives, sobre a «América Tolerante»,
em contraponto com os desvarios de Trump e outros republicanos sobre os
muçulmanos, «Barack Obama é um presidente racionalista a governar na era da
ansiedade».
E isso, de
facto, é um paradoxo do qual nunca se libertará por completo.
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