O Iowa travou o
favoritismo de Donald Trump no lado republicano e pode ter lançado
definitivamente Marco Rubio como o candidato «aceitável» em torno de quem o
establishment do GOP se irá juntar. Mas Donald pode ainda ter no New Hampshire
uma segunda vida, se ficar muito à frente de Ted Cruz - e a forma como Rubio foi «tostado» por Christie, Bush e Kasich no debate televisivo pode ter baralhado ainda mais contas
Do lado democrata, o
quase empate foi sinal de alarme para Hillary, mas garantiu o essencial à super
favorita: evitar que Bernie Sanders ganhasse os dois estados de arranque. A
provável vitória folgada do senador septuagenário de Vermont no New Hampshire
vai animar ainda mais o duelo, mas tudo indica que apenas servirá de «falso
positivo» para as esperanças dos esquerdistas: as minorias da Carolina do Sul
(negros) e Nevada (hispânicos) vão dar sólidas vitórias a Hillary Clinton, que
tem tudo para se posicionar de forma tranquila após os 14 estados da Super
Terça-Feira, já daqui a três semanas.
E depois de
meses e meses de agitadas pré-primárias nos dois partidos (sobretudo com o
«elefante Trump» a baralhar por completo a lógica que muitos previam para a
corrida à nomeação republicana, mas também com um «feel the Bern» maior do que
a estratégia de gestão de vantagem de Hillary terá calculado), finalmente
começaram os votos.
Mas a
procissão ainda vai no adro é há que ter cuidado com a sobreinterpretação dos
primeiros sinais. É que esta é mesmo a mais louca corrida do Mundo e quem parte
à frente nem sempre termina coroado.
A 1 de
fevereiro, os «caucuses» do Iowa foram o primeiro grande teste para os
pretendentes à sucessão de Barack Obama.
E houve… meia surpresa nos dois lados
da barricada
Hillary só
conseguiu bater por uma unha negra Bernie Sanders (49.8%/49.6%), repetindo o
Iowa como um local em que não consegue concretizar as suas melhores expetativas
(há oito anos, foi no pequeno estado do Midwest que arrancou com um modesto
terceiro lugar, com 29%, menos um que John Edwards, menos nove que Obama).
O quase
empate de Sanders foi notável, se nos lembrarmos como a corrida democrata
começou, há mais de um ano: Bernie era um «underdog» com um discurso de
«outsider», que até se referia como «socialista independente»; Hillary começava
imperial e «presumível nomeada», com vantagens de 50 ou 60 pontos.
O que é que se passou, entretanto?
Dois
movimentos simultâneos.
Por um lado,
a campanha de Hillary está a ser menos mobilizadora do que muito esperavam
(falta de capacidade de lançar ideia nova, comparação menorizadora em relação
ao que foi Obama em 2008 e mesmo 2012, sendo que a ex-senadora Clinton herda
boa parte dos temas, dos apoios, dos segmentos políticos e até da máquina
logística e de financiamento das duas campanhas presidenciais vencedoras do
ainda Presidente).
A corrida
presidencial americana é tão longa, que por vezes começar muito alto pode ser
um problema. A estratégia de «gestão de vantagem» que Hillary foi assumindo nos
últimos meses fê-la perder o protagonismo em temas essenciais para o «core»
democrata: serviço nacional de saúde, apoio à classe média, aumento do salário
mínimo, crítica ao sistema financeiro.
Em todas
estas bandeiras, Sanders tem sido mais claro, mais eloquente e mais duro do que
Hillary.
O senador
septuagenário do Vermont, antigo mayor de Burlington, tem conseguido associar
Hillary ao «business as usual».
Mesmo que, na maior parte das vezes, essas críticas não sejam muito justas, a verdade é que, pelo menos nesta fase da corrida, a perceção está a ser muito forte: Bernie é o «campeão dos progressistas», o tipo que defende o povo, aquele que compreende como os jovens se sentem excluídos do sistema de poder.
Mesmo que, na maior parte das vezes, essas críticas não sejam muito justas, a verdade é que, pelo menos nesta fase da corrida, a perceção está a ser muito forte: Bernie é o «campeão dos progressistas», o tipo que defende o povo, aquele que compreende como os jovens se sentem excluídos do sistema de poder.
Ao mesmo
tempo, a campanha de Bernie Sanders tem atingido um nível de apoio que só é
possível de explicar num contexto de crise do sistema tradicional do
bipartidarismo democratas vs republicanos.
Se esses
sinais começaram por ser mais claros, na última década, do lado republicano,
com o crescente peso da ala «Tea Party» e doutro tipo de radicalismo (vide
Donald Trump), ela está a ter, com a força de Sanders nos estados de arranque,
um primeiro caso concreto de um candidato assumidamente fora do «establishment»
democrata a bater-se, taco a taco, com a preferida de quase todos os senadores,
congressistas e governadores de estado democratas – e, é claro, pelo Presidente
Obama e quase toda a sua administração.
Em muitos
aspetos, a retórica e o tipo de apoios de Sanders 2016 fazem lembrar o estilo
de campanha Obama 2008 (já não tanto em 2012): forte no apelo ao eleitorado
jovens e a novos eleitorados não habituados a votar; claro na crítica a «Wall
Street» e na defesa de «Main Street».
Mas há duas
diferenças significativas: Sanders é claramente mais à esquerda do que Obama alguma
vez foi na área dos costumes e na demarcação em relação ao sistema de poder.
Em 2008, o
jovem candidato Barack Obama criticava Washington – mas já tinha fortes apoios
de quem há décadas beneficiava daquele sistema de poder no Congresso e na Casa
Branca.
O quase empate
no Iowa sinalizou problemas de arranque para Hillary e força suficiente para
Sanders continuar na corrida mais algum tempo (já Martin O’Malley, que avançou
ao centro numa altura em que ainda acreditava que Hillary não iria concorrer,
não teve alternativa que não fosse desistir, perante os 0,4%...)
Tudo indica
que o New Hampshire dará vitória folgada a Bernie Sanders (as sondagens dão-lhe
entre 10 e 20 pontos de avanço).
Hillary em risco? Ainda não. Bernie colocou quase todas as fichas
nos dois primeiros estados, para conseguir um embalo de duas vitórias seguidas
que poderia abalar as estruturas do favoritismo de Clinton.
A vitória
mínima de Hillary no Iowa já impediu essa estratégia, pelo que a antiga
secretária de Estado já não corre o risco de perder os dois estados de
arranque.
Perderá,
muito provavelmente, o segundo (primeiro em sistema tradicional de votação de
primárias), mas é preciso explicar que o Iowa e New Hampshire juntos não passam
dos 5% do total de delegados à convenção democrata.
E a nomeação
presidencial é, essencialmente, um exercício matemático: se Sanders vencer NH
(estado vizinho ao seu Vermont e com fortes credenciais independentes e
liberais) com a vantagem que as sondagens indicam, isso dará ao senador do
Vermont uma vantagem de apenas alguns delegados.
À medida que
as primárias se deslocarem para os estados sulistas e para o Oeste, Hillary
tenderá a destacar-se: nos negros (Carolina do Sul) e nos hispânicos (Nevada),
Clinton tem vantagens enormes sobre Sanders (perto de 30 por cento de avanço no
total dos dois estados, ainda mais se olharmos só para estes segmentos).
Deste modo,
prevê-se que depois da Super Terça Feira (14 estados em disputa), já daqui a
três semanas, Hillary obtenha já um avanço muito considerável no número de
delegados e no número de estados ganhos em relação ao, ainda assim,
surpreendente Bernie.
A
confirmar-se esta tendência para as próximas semanas, é de admitir que o campo
democrata se defina bem antes do verão, com a nomeação de Hillary a ser
aprimorada com uma acesa e interessante luta ideológica e de argumentos com
Sanders.
A grande
questão para Hillary, a partir de abril/maio, será mesmo o que fazer com a
escolha para vice-presidente: reconhecer em Bernie Sanders uma alternativa à
esquerda suficiente para o coroar como número dois do ticket (Elizabeth Warren
também teria perfil, mas não se imaginaria, mesmo em 2016 e nos democratas, um
ticket 100% feminino), ou optar por uma solução mais moderada, capaz de chegar
ao eleitorado do centro, independente e mesmo de republicanos desiludidos?
Rubio a descolar nos «aceitáveis»... mas sob pressão
O caso
republicano é bem mais complexo e arriscado de antecipar.
De todo o
modo, o Iowa pode já ter dado sinais muito claros quanto ao nomeado que
«establishment» do Partido Republicano começa a antecipar para a convenção de
julho em Cleveland, Ohio.
O que é mais
curioso é que esse possível nomeado ainda
não apareceu uma única vez a liderar as sondagens a nível nacional -- e
mesmo no plano estadual só disputa a liderança na Florida.
Mas esse é
um dos fatores que torna a dinâmica de uma corrida presidencial na América uma
experiência única nas democracias.
Marco Rubio, jovem senador da Florida, de 44
anos, ficou em terceiro no Iowa, com 23%, perto dos 24% de Donald Trump e não
muito longe dos 28% do vencedor Ted Cruz.
Sucede que
os dois candidatos mais votados no «caucus» republicano do Iowa continuam a ser
vistos como cartas fora do baralho para o Partido Republicano.
Ted Cruz
monopolizou o voto evangélico do Iowa e isso deu-lhe a vitória. Atirou Trump
para uma «criação imposta pelos media» e demarcou-se dos outros candidatos que
«representam o poder podre de Washington».
Senador da
ala radical, esteve contra o acordo feito para resolver o «government shutdown»
de 2013 e discursou 13 horas seguidas para tentar impedir o ObamaCare.
Mesmo junto
dos seus colegas de bancada, estes comportamentos foram vistos como desadequados.
Cruz não pertence assumidamente «ao clube» e com ele a noção de
«reconciliação», que Obama já assumiu ter sido o grande falhanço da sua
presidência, tenderia a piorar.
E Donald Trump?
Por muitas
análises que se façam, é inevitável reconhecer que até agora estas eleições
presidenciais nos EUA estão a ser dominadas, no registo, no tom, nos temas e na
atenção mediática, por Donald Trump.
Até algumas
observações e reflexões feitas pelo Presidente Obama no seu último Discurso
sobre o Estado da União o assumiram, nas entrelinhas: o tipo de desvarios
lançados por Trump nesta campanha são um sinal de doença do ambiente político
em Washington.
A grande
questão é se isso chega para dar uma nomeação presidencial a um candidato tão
inusitado e tão desbragado como Donald Trump.
Apesar de
tudo, quero acreditar que não.
Em primeiro
lugar, há que ver que Trump é mesmo um outsider: mesmo liderando as sondagens,
nenhum (nem um único!) senador ou governador de estado o apoia.
A perda de
gás das últimas semanas já sinalizava alguma crise na tendência Trump, apesar
dos números de Donald serem, nesta fase, a todos os títulos inesperados.
Ao não
vencer o Iowa, Trump pode ter tido um primeiro sinal de alerta, mas é provável
que Donald ainda consiga vencer o New Hampshire (estado onde Ted Cruz não está
forte).
Uma corrida infetada pelo populismo
Uma coisa já
ninguém tira a Trump (e um pouco a Cruz também): não são apenas os dois primeiros no
estado de arranque; conseguiram, de forma provavelmente definitiva, infetar a
escolha de temas na corrida republicana.
Chega a ser
penoso ver Jeb Bush (até há poucos meses um suposto moderado com inclinação
para defender minorias) a prometer regresso a intervenções musculadas e a falar
em travar a entrada de sírios e muçulmanos em geral ou até John Kasich, um
pragmático do Ohio, a falar em «bombardear o Estado Islâmico até desaparecer do
mapa».
Já não se
trata de um fenómeno passageiro: o eleitorado republicano, ao prestar tanta
atenção e durante tantos meses a dois candidatos como Donald Trump e Ted Cruz,
está a dizer que deixou de confiar no «establishment».
Sintomas de mudança
Há alguns
anos, este leque de candidatos dos dois lados daria, de forma mais ou menos
natural, na nomeação de Hillary Clinton e Jeb Bush.
Acontece
que, nos últimos quatro anos, as coisas mudaram.
Em 2012,
Donald Trump não conseguiu grande atenção e desistiu de uma candidatura
presidencial antes de chegar ao escrutínio dos votos. Mitt Romney, mesmo sendo
considerado um candidato pouco carismático, impôs-se como a solução mais
credível para a eleição geral.
As coisas,
desta vez, já não são assim tão previsíveis.
Jeb Bush não
descola dos 3/5% e corre o risco de nem sequer chegar à Florida -- tem logo à noite um espécie de... nova última oportunidade para renascer, se ficar num dos três primeiros e, de preferência, à frente de Rubio; Chris Christie,
visto até há poucos anos como uma solução interessante de um candidato costa
leste a falar duro e com um carisma próprio, tenta renascer das cinzas e também
pode nem chegar à fase decisiva.
Scott
Walker, com um perfil quase ao raio x do que deve ser um nomeado republicano
com hipóteses de ser eleito (governador popular de estado eleitoralmente
competitivo; jovem; fiscalmente conservador), passou de possível competidor a
desistente em fase precoce.
Outros
candidatos que poderiam ter uma palavra a dizer, como Bobby Jindal ou Carly
Fiorina, também passaram ao lado da corrida: Bobby já desistiu e declarou apoio
a Rubio (tal como Rick Santorum), Carly, apesar de bons desempenhos nos
debates, deixou de existir nas sondagens.
No meio de
tantos sinais inesperados, quase todos eles sintomas de um Partido Republicano
em crise de identidade e sem saber muito bem como reagir aos fenómenos Trump e
Cruz, os 23% de Marco Rubio no Iowa (mais do dobro do que as sondagens previam)
podem ter lançado o cubano-americano da Florida como a alternativa «aceitável»
em torno da qual as forças dominantes do Partido Republicano acabarão por se
unir.
Conservador
em temas sociais, Marco Rubio consegue chegar a um eleitorado um pouco mais
moderado com as suas propostas fiscais para a classe média e com o seu apelo ao
eleitorado hispânico.
Se conseguir
um segundo lugar honroso no New Hampshire, e claramente acima de Jeb Bush e
Chris Christie (no Iowa teve o quíntuplo dos votos dos outros dois
«moderados»), Marco Rubio pode assumir-se, de forma ainda mais definitiva, como
a solução mais provável para que se evite um escândalo Trump ou um
semi-escândalo Cruz na convenção de Cleveland.
A forma como
Chris Christie o pôs sob fogo no debate televisivo do New Hamsphire foi a prova
final de que Marco Rubio é mesmo, a partir de agora, o alvo a abater para quem
ainda sonha disputar o estatuto de preferido do «establishment» para barrar
Trump e Cruz.
Rubio não teve, nesse debate, uma reação muito satisfatória, mas os resultados das próximas primárias serão os indicadores mais fiéis sobre se tem mesmo estaleca para se assumir como possível nomeado.
«Tostado» nesse debate não só por Christie, mas também por Jeb Bush e John Kasich, Rubio pode ter colocado em risco essa noção de que é o candidato ideal para a frente «anti-Trump».
Rubio não teve, nesse debate, uma reação muito satisfatória, mas os resultados das próximas primárias serão os indicadores mais fiéis sobre se tem mesmo estaleca para se assumir como possível nomeado.
«Tostado» nesse debate não só por Christie, mas também por Jeb Bush e John Kasich, Rubio pode ter colocado em risco essa noção de que é o candidato ideal para a frente «anti-Trump».
O New
Hampshire vai ajudar-nos a clarificar um pouco melhor os caminhos destas
primárias 2016 nos EUA.
Mas cuidado com o que ainda não nos
vai mostrar –
sobretudo se, como dizem as sondagens, Trump e Sanders vencerem com alguma
folga.
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