A América é ótima:
elegeu Obama duas vezes. A América é péssima: está a ir na perigosa cantiga de
Trump. É uma enorme, mas também definidora, contradição. O mesmo sistema que
permitiu a fantástica eleição de Barack em 2008 pode, agora, gerar uma
assustadora nomeação presidencial de Donald – e tem como alternativa mais
próxima um quase tão assustador Ted Cruz. É o lado negro de uma América que nos
surpreende: muitas vezes para melhor mas também para o pior
Donald Trump está, na
prática, a duas vitórias da nomeação: se ganhar os estados «winner takes all»
Florida e Ohio (o mais votado arrecada todos os delegados em jogo), basta
manter até ao fim da corrida a percentagem de votos que tem tido para poder
chegar à Convenção de Cleveland com o número mágico (1.237 delegados) que lhe
permite não depender de outras contas
Uma boa fatia do
Partido Republicano parece disposta a não aceitar Donald Trump. A forma como
Marco Rubio e John Kasich continuam a falar do inesperado «frontrunner» anuncia
um clima de tensão e discórdia no GOP, nos próximos meses. Mas como acreditar
num «golpe de teatro» que trave a investidura de Trump em Cleveland se até
agora só se tem assistido ao falhanço de todas as possíveis alternativas ao
«desastre Trump»?
Hillary Clinton tem
enorme avanço sobre Bernie Sanders na contagem dos delegados, graças ao apoio
maciço dos superdelegados. Mas a diferença nas votações por estado não é assim
tão grande. O triunfo de Bernie no Michigan apanhou toda a gente de surpresa e
voltou a pôr a nu as dificuldades que Hillary pode vir a ter no eleitorado
jovem e ‘white blue collar’
Ainda não dá
para não abrir a boca de espanto.
O mesmo
sistema que permitiu a extraordinária caminhada de um candidato com as
características de Barack Obama em 2008 chegar à Casa Branca e ser reeleito em
2012 pode, agora, proporcionar uma nomeação assustadora de Donald Trump.
É o lado
negro da mais louca corrida do mundo.
Não vale a
pena dizer agora que «os americanos são irresponsáveis e ignorantes». Isso é um
simplismo que não ajuda a percebermos o essencial.
Na verdade, «os
americanos» foram capazes de protagonizar a fantástica eleição do primeiro
negro no mais influente cargo político a nível mundial.
E ainda é
cedo para dizer que os tais «americanos» se aprestam para, desta vez, entregar
a Casa Branca a mr. Trump.
Para já, o
«ónus» vai para o eleitorado republicano – e, verdade seja dita, nas sondagens
para a eleição geral Hillary bate sempre Trump, ainda que por diferenças não
totalmente tranquilizadoras (entre os 4 e os 12 pontos, consoante os estudos).
Ainda assim,
a provável investidura do truculento multimilionário nova-iorquino é um
terramoto para os republicanos e pode levar a dissensões insanáveis no partido
que produziu presidentes da dimensão de Lincoln, Teddy Roosevelt, Eisenhower ou
Reagan.
O cenário
torna-se ainda pior para uma certa noção de conservadorismo moderado americano,
quando vemos que o único candidato com condições reais de ainda ultrapassar
Trump na soma dos delegados não é Marco Rubio, nem sequer John Kasich: é o senador
texano Ted Cruz.
É que, como
bem avisou o ex-Presidente Jimmy Carter, «em muitos aspetos, Cruz é pior que
Trump». «Sobre Trump, sei que se ele fosse presidente não faria quase nada dos
disparates que anda a dizer na campanha. Com Cruz é diferente. Cruz acredita
verdadeiramente no que diz e tem posição de extrema-direita que não se coadunam
com a governação da América».
A tese não é
só de Carter.
São cada vez
mais os que acreditam que Trump, uma vez na Casa Branca, não faria quase nada
do que está a propalar na campanha: muro para separar o México dos EUA; como?
Expulsão dos muçulmanos; para onde?
Já em
relação a Ted Cruz, o registo do texano ligado ao Tea Party no Senado confirma
um radicalismo extremo e consistente: Ted foi um dos ideólogos do «shutdown» e
tem um ódio de morte a todas as políticas defendidas pela Administração Obama.
Não por
acaso, nas intervenções públicas do Presidente Obama sobre o ambiente que se
tem gerado nas primárias republicanas, Barack não cinge as suas críticas e
avisos aos desvarios de Donald Trump. «Os restantes candidatos defendem coisas
igualmente preocupantes. Ser presidente é muito difícil», atalhou Obama.
Mais
direcionado foi o Papa Francisco quando sentenciou: «Trump não pode ser
cristão, porque os cristãos não constroem muros, constroem pontes».
O fim do GOP tal como o conhecíamos?
O
«establishment» do GOP (Grand Old Party)
está feito em cacos.
A aposta que
parecia mais segura (Jeb Bush) falhou espetacularmente. Jeb foi governador
credenciado na Florida, filho e irmão de ex-Presidentes.
Se esta
corrida tivesse sido há uns anos, parecia ter tudo para ser o nomeado: o nome dinástico,
o currículo político, a capacidade de segurar o eleitorado conservador e ir
buscar independentes e moderados democratas, dispostos a dar uma oportunidade a
um republicano, depois de oito anos de presidência democrata, em nome da
alternância.
Para mais,
Jeb fala muito bem espanhol e é casado com uma hispânica. Estava lançado o
caminho para que o nomeado republicano, desta vez, disputasse seriamente o
crescente eleitorado latino, que nas últimas duas eleições preferiu maciçamente
Obama a McCain e Romney.
Nada disso.
2016 está
mesmo a ser mais inesperada e contraditória corrida presidencial americana em
várias décadas.
Jeb Bush, o
candidato com mais nome, mais currículo e mais dinheiro, desistiu cedo.
Ainda antes
tinha caído aquele que parecia ser um possível emergente desta corrida de 2016:
Scott Walker. Bem mais novo que Bush, com créditos firmados no estado que governa,
o Wisconsin, e propostas de conservadorismo fiscal com tudo para agradar à
«republican base».
Walker, que
chegou a liderar no Iowa, viu depressa o filme que iria começar a acontecer no
seu partido: nas semanas seguintes à entrada ruidosa e destruidora de Trump,
caiu a pique no Iowa e não ficou melhor nos estados que se seguiam no
calendário.
Resultado:
Scott desistiu meses antes do início das primárias, tentando passar mensagem
profilática aos restantes contendores – travem a ameaça Trump enquanto é tempo de
salvar o partido.
«Frente anti-Trump»? Onde?
Só que a
mensagem de Scott Walker, reproduzida nas semanas seguintes por outros
republicanos de peso (entre os quais antigos candidatos à presidência, como
Mitt Romney ou John McCain, e pela generalidade dos analistas e comentadores)
não surtiu efeito.
Bem pelo
contrário: Chris Christie, governador da Nova Jérsia que até gozava de aura
irreverente e pensamento próprio, chocou o sistema político americano (nos dois
campos partidários) ao ser o primeiro ex-candidato e político de dimensão
nacional a declarar apoio a Trump e a aparecer com Donald em ações de campanha,
num gesto vergonhoso que lhe terá custado a perda da credibilidade que ainda
lhe restava (na Nova Jérsia já há quem exija a demissão do governador).
Mais tarde, Ben
Carson seguiu as pisadas de Christie (embora no caso do neurocirurgião negro, a
surpresa não tenha sido tão grande, dados os pontos de contato com o
posicionamento de Trump em relação às críticas ao sistema político, às regras
de Washington e ao currículo de «não-político profissional»).
Bem mais
desconcertante do que estes apoios foi a total falta de noção de «frente
anti-Trump» em toda a dinâmica da corrida republicana até agora.
Quando Jeb
Bush desistiu, gerou-se uma expetativa de um apoio geral do «establishment»
republicano em torno de Marco Rubio. Alguns até pediam a John Kasich (na
verdade, o mais moderado dos sobreviventes da corrida) para desistir também, de
modo a concretizar essa «frente anti-Trump» em torno do senador
cubano-descendente da Florida.
O problema é
que nada disso aconteceu. Nem Rubio beneficiou de apoios sucessivos dos seus
pares, nem sequer Kasich saiu do caminho.
E o momento
atual da corrida republicana não deixa grandes dúvidas: ou Rubio consegue uma
recuperação espetacular nos próximos dias e, contrariando todas as sondagens,
vence na Florida, ganhando assim um novo fôlego para o que resta da corrida, ou
será uma carta fora do baralho depois de 15 de março.
Kasich, já
sem qualquer hipótese de sonhar com a nomeação, tem possibilidades reais de
vencer as primárias do Ohio, estado que governa com popularidade muito elevada
(as últimas sondagens colocam-no a apenas um ponto de Trump).
Numa jogada
inteligente, Rubio está a aconselhar os seus apoiantes a votarem «útil» em
Kasich no Ohio. Se esse apelo funcionar, não é de excluir que Trump não consiga
vencer no influente estado do Midwest.
Mas caso
Donald arrebate mesmo os dois grandes prémios da próxima terça à noite (99
delegados em jogo na Florida, 66 no Ohio, ambos em sistema ‘winner takes all’),
a questão fica arrumada: Trump será mesmo o candidato com mais delegados até ao
fim – e mantendo a média dos votos que tem tido até agora, é quase certo que
chegará à Convenção de Cleveland com o número mágico assegurado (pelo menos
1.237 delegados arrecadados durante as primárias).
Apertem os cintos: vem aí mais
turbulência
Neste
momento, Donald Trump tem 460 delegados, Ted Cruz soma 370, Marco Rubio fica-se
por uns frustrantes 163 e Kasich tem uns irrelevantes 63.
Trump arrebatou já 15 estados (New
Hampshire, Carolina do Sul, Nevada, Alabama, Arkansas, Geórgia, Massachussets,
Tennessee, Vermont, Virgínia, Luisiana, Kentucky, Hawai, Michigan, Mississipi)
; Cruz ganhou em oito (Iowa, Alaska, Oklahoma, Texas, Kansas, Maine, Idaho, Wyoming);
Rubio venceu apenas no Minnesota, em Porto Rico e na capital federal (District of Columbia)..
Se a questão
fosse só matemática, pareceria que tudo está ainda em aberto entre Trump e
Cruz. Só que o senador texano não tem qualquer hipótese de obter os grandes
prémios do próximo dia 15. E não dá mostras de se bater com Donald nos estados
que não sejam da «Bible Belt» e do Sul.
Ao contrário
do que muitos disseram e escreveram nos últimos meses, Donald Trump tem-se
mostrado um candidato transversal: é forte em estados do Sul, com mais pendor
religioso e evangélico; é forte em estados do Midwest (apanhando zonas
economicamente deprimidas e excluídas da «globalização») e, surpresa das
surpresas, está a mostrar-se forte também em estados cosmopolitas da Costa
Leste e até nos estados com muitos hispânicos.
Donde, a
tese de que Ted Cruz seria um «mal menor» para o Partido Republicano não colhe.
Em muitos
aspetos, incluindo o desempenho eleitoral projetado numa eleição nacional,
Donald Trump está a revelar-se menos «assustador» que Cruz. E embora mantenha
boa parte dos desvarios com que se lançou para uma surpreendente liderança
folgada, a verdade é que, quanto mais avança com vitórias em estados e soma de
delegados, mais tenta passar uma imagem de «unificador» do Partido Republicano.
A política
americana, de facto, não para de nos surpreender.
Tempos interessantes, mas
perturbadores
Como diria a
velha maldição chinesa, «vêm aí tempos interessantes» do lado republicano.
O tempo para
travar Trump pode já ter passado na lógica tradicional de um processo de
primárias, mas a verdade é que esta corrida de 2016 está a ser diferente de
todas as outras.
Não será de
excluir um «golpe de teatro» na Convenção de Cleveland, sobretudo se Donald não
ganhar no Ohio e, com isso, perder gás na caminhada para uma soma maioritária
de delegados.
A questão é
mesmo esta: e se Trump aparecer na convenção de julho com mais de 1000
delegados, mas menos que os tais 1.237? Há espaço para uma rejeição do
candidato mais votado pelo «povo republicano»?
Há pouco
mais de uma década, Donald dizia sentir-se «mais próximo dos democratas que dos
republicanos», porque «o Partido Republicano é demasiado à direita». Será que
na hora da verdade Ted Cruz conseguirá convencer o resto do partido que, ele
sim, pode assumir as bandeiras do conservadorismo americano?
Há correntes
do conservadorismo (e «neoconservadorismo», também) americano que têm apontado,
nas últimas semanas, em artigos e em intervenção em «think tanks», um cenário
de rutura: o Partido Republicano, em nome dos seus valores e dos seus
princípios, deve rejeitar Trump na Convenção, forçando-o a a uma candidatura
independente, mesmo que Donald obtenha o número mágico de delegados.
Seria um
cenário extremo, de turbulência máxima, e que colocava o nomeado republicano
(alguém que ainda não foi votos?) numa posição de fragilidade e até de alguma
falta de legitimidade (na América, a vontade do povo é levada mesmo muito a
sério).
Não parece,
pois, muito provável que isso venha a acontecer.
Talvez mais republicanos
tenham mesmo que seguir a via de Christie ou, pelo menos, que engolir o «elefante
Trump», por muitas indigestões isso possa causar (veja-se o clima de tensão, quase violência, que está a criar-se nos comícios de Trump).
Mas nesta estranhíssima
corrida de 2016, o melhor mesmo é não afastar qualquer cenário. Como Sherlock
Holmes costumava dizer ao fiel ajudante Watson: «Exclua o impossível e o que
restar, por muito improvável que lhe possa parecer, será a resposta».
Fragilidades no superfavoritismo de
Hillary
No campo
democrata, a questão da nomeação está resolvida: não restam dúvidas de que
Hillary Clinton vai mesmo ser investida como candidata presidencial na
convenção de Filadélfia.
O avanço da
ex-secretária de Estado sobre o senador socialista do Vermont é já suficiente
para ser seguro atribuir, de forma tão precoce, esse resultado final.
Hillary tem
já garantidos 1.231 delegados (766 por votação e 465 superdelegados); Sanders
fica-se pelos 576 (551 por votação e apenas 25 superdelegados).
Clinton venceu já em 13 estados
(Iowa, Nevada, Carolina do Sul, Alabama, Arkansas, Geórgia, Massachussets, Tennessee, Texas, Virgínia, Samoa Americana, Luisiana e Mississipi); Bernie
ganhou em nove (New Hampshire, Colorado, Minnesota, Oklahoma, Vermont, Kansas,
Nebraska, Maine e Michigan).
Mas nem sempre os números dizem tudo.
Não fosse o enorme avanço que Hillary
tem nos superdelegados, estaríamos neste momento a falar numa acesa disputa
pela nomeação no lado democrata.
O discurso duro, frontal e corrosivo
de Sanders está a passar essencialmente em dois eleitorados importantes para a
«grande tenda democrata»: os jovens até aos 30 anos, especialmente os que têm
alguma diferenciação académica e se sentem injustiçados pelo sistema; e ainda
pelo eleitorado «white blue collar», excluído da globalização, que perdeu nos
últimos anos o seu emprego em «indústrias tradicionais» e não tem habilitações
para poder reconverter-se à «nova economia», talhada para quem tem credenciais
no mundo digital e não em indústrias pesadas.
A vitória de Bernie no Michigan
(terreno que parecia ser favorável a Hillary) apanhou todos de surpresa. E foi
a prova final das vulnerabilidades que a antiga Primeira Dama e senadora por
Nova Iorque tem em segmentos em que terá que vencer claramente na eleição
geral.
É certo que Hillary também já obteve
vitórias esmagadoras (50 pontos de vantagem na Carolina do Sul, quase 70 por
cento de avanço sobre Sanders no Mississipi…), mas também é verdade que o que
está a garantir a Clinton o caminho para a nomeação é a fidelidade do voto
negro, dos latinos e dos «aparelho» do Partido Democrata.
Chega para obter a nomeação contra o
desalinhado Sanders. De acordo com as sondagens, também chegará para bater
Trump na eleição geral.
Mas Hillary terá, nos próximos meses,
que conseguir descolar da imagem de uma candidata «do sistema», demasiado
comprometida com o «business as usual» de Washington.
Em tempos em que o populismo rende
tanto eleitoralmente, não será de excluir que Donald Trump consiga apanhar
parte dos votos anti-sistema que Sanders está a obter.
Nunca foi tão difícil antecipar os
resultados finais de uma eleição presidencial na América.
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