sábado, 12 de março de 2016

Histórias da Casa Branca: o lado negro da mais louca corrida do mundo



A América é ótima: elegeu Obama duas vezes. A América é péssima: está a ir na perigosa cantiga de Trump. É uma enorme, mas também definidora, contradição. O mesmo sistema que permitiu a fantástica eleição de Barack em 2008 pode, agora, gerar uma assustadora nomeação presidencial de Donald – e tem como alternativa mais próxima um quase tão assustador Ted Cruz. É o lado negro de uma América que nos surpreende: muitas vezes para melhor mas também para o pior



Donald Trump está, na prática, a duas vitórias da nomeação: se ganhar os estados «winner takes all» Florida e Ohio (o mais votado arrecada todos os delegados em jogo), basta manter até ao fim da corrida a percentagem de votos que tem tido para poder chegar à Convenção de Cleveland com o número mágico (1.237 delegados) que lhe permite não depender de outras contas




Uma boa fatia do Partido Republicano parece disposta a não aceitar Donald Trump. A forma como Marco Rubio e John Kasich continuam a falar do inesperado «frontrunner» anuncia um clima de tensão e discórdia no GOP, nos próximos meses. Mas como acreditar num «golpe de teatro» que trave a investidura de Trump em Cleveland se até agora só se tem assistido ao falhanço de todas as possíveis alternativas ao «desastre Trump»?



Hillary Clinton tem enorme avanço sobre Bernie Sanders na contagem dos delegados, graças ao apoio maciço dos superdelegados. Mas a diferença nas votações por estado não é assim tão grande. O triunfo de Bernie no Michigan apanhou toda a gente de surpresa e voltou a pôr a nu as dificuldades que Hillary pode vir a ter no eleitorado jovem e ‘white blue collar’




Ainda não dá para não abrir a boca de espanto.

O mesmo sistema que permitiu a extraordinária caminhada de um candidato com as características de Barack Obama em 2008 chegar à Casa Branca e ser reeleito em 2012 pode, agora, proporcionar uma nomeação assustadora de Donald Trump.

É o lado negro da mais louca corrida do mundo.

Não vale a pena dizer agora que «os americanos são irresponsáveis e ignorantes». Isso é um simplismo que não ajuda a percebermos o essencial.

Na verdade, «os americanos» foram capazes de protagonizar a fantástica eleição do primeiro negro no mais influente cargo político a nível mundial.

E ainda é cedo para dizer que os tais «americanos» se aprestam para, desta vez, entregar a Casa Branca a mr. Trump.

Para já, o «ónus» vai para o eleitorado republicano – e, verdade seja dita, nas sondagens para a eleição geral Hillary bate sempre Trump, ainda que por diferenças não totalmente tranquilizadoras (entre os 4 e os 12 pontos, consoante os estudos).

Ainda assim, a provável investidura do truculento multimilionário nova-iorquino é um terramoto para os republicanos e pode levar a dissensões insanáveis no partido que produziu presidentes da dimensão de Lincoln, Teddy Roosevelt, Eisenhower ou Reagan.

O cenário torna-se ainda pior para uma certa noção de conservadorismo moderado americano, quando vemos que o único candidato com condições reais de ainda ultrapassar Trump na soma dos delegados não é Marco Rubio, nem sequer John Kasich: é o senador texano Ted Cruz.

É que, como bem avisou o ex-Presidente Jimmy Carter, «em muitos aspetos, Cruz é pior que Trump». «Sobre Trump, sei que se ele fosse presidente não faria quase nada dos disparates que anda a dizer na campanha. Com Cruz é diferente. Cruz acredita verdadeiramente no que diz e tem posição de extrema-direita que não se coadunam com a governação da América».

A tese não é só de Carter.

São cada vez mais os que acreditam que Trump, uma vez na Casa Branca, não faria quase nada do que está a propalar na campanha: muro para separar o México dos EUA; como? Expulsão dos muçulmanos; para onde?

Já em relação a Ted Cruz, o registo do texano ligado ao Tea Party no Senado confirma um radicalismo extremo e consistente: Ted foi um dos ideólogos do «shutdown» e tem um ódio de morte a todas as políticas defendidas pela Administração Obama.

Não por acaso, nas intervenções públicas do Presidente Obama sobre o ambiente que se tem gerado nas primárias republicanas, Barack não cinge as suas críticas e avisos aos desvarios de Donald Trump. «Os restantes candidatos defendem coisas igualmente preocupantes. Ser presidente é muito difícil», atalhou Obama.

Mais direcionado foi o Papa Francisco quando sentenciou: «Trump não pode ser cristão, porque os cristãos não constroem muros, constroem pontes».

O fim do GOP tal como o conhecíamos?

O «establishment» do GOP (Grand Old Party) está feito em cacos.

A aposta que parecia mais segura (Jeb Bush) falhou espetacularmente. Jeb foi governador credenciado na Florida, filho e irmão de ex-Presidentes.

Se esta corrida tivesse sido há uns anos, parecia ter tudo para ser o nomeado: o nome dinástico, o currículo político, a capacidade de segurar o eleitorado conservador e ir buscar independentes e moderados democratas, dispostos a dar uma oportunidade a um republicano, depois de oito anos de presidência democrata, em nome da alternância.

Para mais, Jeb fala muito bem espanhol e é casado com uma hispânica. Estava lançado o caminho para que o nomeado republicano, desta vez, disputasse seriamente o crescente eleitorado latino, que nas últimas duas eleições preferiu maciçamente Obama a McCain e Romney.

Nada disso.

2016 está mesmo a ser mais inesperada e contraditória corrida presidencial americana em várias décadas.

Jeb Bush, o candidato com mais nome, mais currículo e mais dinheiro, desistiu cedo.

Ainda antes tinha caído aquele que parecia ser um possível emergente desta corrida de 2016: Scott Walker. Bem mais novo que Bush, com créditos firmados no estado que governa, o Wisconsin, e propostas de conservadorismo fiscal com tudo para agradar à «republican base».

Walker, que chegou a liderar no Iowa, viu depressa o filme que iria começar a acontecer no seu partido: nas semanas seguintes à entrada ruidosa e destruidora de Trump, caiu a pique no Iowa e não ficou melhor nos estados que se seguiam no calendário.

Resultado: Scott desistiu meses antes do início das primárias, tentando passar mensagem profilática aos restantes contendores – travem a ameaça Trump enquanto é tempo de salvar o partido.

«Frente anti-Trump»? Onde?

Só que a mensagem de Scott Walker, reproduzida nas semanas seguintes por outros republicanos de peso (entre os quais antigos candidatos à presidência, como Mitt Romney ou John McCain, e pela generalidade dos analistas e comentadores) não surtiu efeito.

Bem pelo contrário: Chris Christie, governador da Nova Jérsia que até gozava de aura irreverente e pensamento próprio, chocou o sistema político americano (nos dois campos partidários) ao ser o primeiro ex-candidato e político de dimensão nacional a declarar apoio a Trump e a aparecer com Donald em ações de campanha, num gesto vergonhoso que lhe terá custado a perda da credibilidade que ainda lhe restava (na Nova Jérsia já há quem exija a demissão do governador).

Mais tarde, Ben Carson seguiu as pisadas de Christie (embora no caso do neurocirurgião negro, a surpresa não tenha sido tão grande, dados os pontos de contato com o posicionamento de Trump em relação às críticas ao sistema político, às regras de Washington e ao currículo de «não-político profissional»).

Bem mais desconcertante do que estes apoios foi a total falta de noção de «frente anti-Trump» em toda a dinâmica da corrida republicana até agora.

Quando Jeb Bush desistiu, gerou-se uma expetativa de um apoio geral do «establishment» republicano em torno de Marco Rubio. Alguns até pediam a John Kasich (na verdade, o mais moderado dos sobreviventes da corrida) para desistir também, de modo a concretizar essa «frente anti-Trump» em torno do senador cubano-descendente da Florida.

O problema é que nada disso aconteceu. Nem Rubio beneficiou de apoios sucessivos dos seus pares, nem sequer Kasich saiu do caminho.

E o momento atual da corrida republicana não deixa grandes dúvidas: ou Rubio consegue uma recuperação espetacular nos próximos dias e, contrariando todas as sondagens, vence na Florida, ganhando assim um novo fôlego para o que resta da corrida, ou será uma carta fora do baralho depois de 15 de março.

Kasich, já sem qualquer hipótese de sonhar com a nomeação, tem possibilidades reais de vencer as primárias do Ohio, estado que governa com popularidade muito elevada (as últimas sondagens colocam-no a apenas um ponto de Trump).

Numa jogada inteligente, Rubio está a aconselhar os seus apoiantes a votarem «útil» em Kasich no Ohio. Se esse apelo funcionar, não é de excluir que Trump não consiga vencer no influente estado do Midwest.





Mas caso Donald arrebate mesmo os dois grandes prémios da próxima terça à noite (99 delegados em jogo na Florida, 66 no Ohio, ambos em sistema ‘winner takes all’), a questão fica arrumada: Trump será mesmo o candidato com mais delegados até ao fim – e mantendo a média dos votos que tem tido até agora, é quase certo que chegará à Convenção de Cleveland com o número mágico assegurado (pelo menos 1.237 delegados arrecadados durante as primárias).

Apertem os cintos: vem aí mais turbulência

Neste momento, Donald Trump tem 460 delegados, Ted Cruz soma 370, Marco Rubio fica-se por uns frustrantes 163 e Kasich tem uns irrelevantes 63.

Trump arrebatou já 15 estados (New Hampshire, Carolina do Sul, Nevada, Alabama, Arkansas, Geórgia, Massachussets, Tennessee, Vermont, Virgínia, Luisiana, Kentucky, Hawai, Michigan, Mississipi) ; Cruz ganhou em oito (Iowa, Alaska, Oklahoma, Texas, Kansas, Maine, Idaho, Wyoming); Rubio venceu apenas no Minnesota, em Porto Rico e na capital federal (District of Columbia)..

Se a questão fosse só matemática, pareceria que tudo está ainda em aberto entre Trump e Cruz. Só que o senador texano não tem qualquer hipótese de obter os grandes prémios do próximo dia 15. E não dá mostras de se bater com Donald nos estados que não sejam da «Bible Belt» e do Sul.

Ao contrário do que muitos disseram e escreveram nos últimos meses, Donald Trump tem-se mostrado um candidato transversal: é forte em estados do Sul, com mais pendor religioso e evangélico; é forte em estados do Midwest (apanhando zonas economicamente deprimidas e excluídas da «globalização») e, surpresa das surpresas, está a mostrar-se forte também em estados cosmopolitas da Costa Leste e até nos estados com muitos hispânicos.

Donde, a tese de que Ted Cruz seria um «mal menor» para o Partido Republicano não colhe.

Em muitos aspetos, incluindo o desempenho eleitoral projetado numa eleição nacional, Donald Trump está a revelar-se menos «assustador» que Cruz. E embora mantenha boa parte dos desvarios com que se lançou para uma surpreendente liderança folgada, a verdade é que, quanto mais avança com vitórias em estados e soma de delegados, mais tenta passar uma imagem de «unificador» do Partido Republicano.

A política americana, de facto, não para de nos surpreender.

Tempos interessantes, mas perturbadores

Como diria a velha maldição chinesa, «vêm aí tempos interessantes» do lado republicano.

O tempo para travar Trump pode já ter passado na lógica tradicional de um processo de primárias, mas a verdade é que esta corrida de 2016 está a ser diferente de todas as outras.

Não será de excluir um «golpe de teatro» na Convenção de Cleveland, sobretudo se Donald não ganhar no Ohio e, com isso, perder gás na caminhada para uma soma maioritária de delegados.

A questão é mesmo esta: e se Trump aparecer na convenção de julho com mais de 1000 delegados, mas menos que os tais 1.237? Há espaço para uma rejeição do candidato mais votado pelo «povo republicano»?

Há pouco mais de uma década, Donald dizia sentir-se «mais próximo dos democratas que dos republicanos», porque «o Partido Republicano é demasiado à direita». Será que na hora da verdade Ted Cruz conseguirá convencer o resto do partido que, ele sim, pode assumir as bandeiras do conservadorismo americano?

Há correntes do conservadorismo (e «neoconservadorismo», também) americano que têm apontado, nas últimas semanas, em artigos e em intervenção em «think tanks», um cenário de rutura: o Partido Republicano, em nome dos seus valores e dos seus princípios, deve rejeitar Trump na Convenção, forçando-o a a uma candidatura independente, mesmo que Donald obtenha o número mágico de delegados.

Seria um cenário extremo, de turbulência máxima, e que colocava o nomeado republicano (alguém que ainda não foi votos?) numa posição de fragilidade e até de alguma falta de legitimidade (na América, a vontade do povo é levada mesmo muito a sério).

Não parece, pois, muito provável que isso venha a acontecer. 

Talvez mais republicanos tenham mesmo que seguir a via de Christie ou, pelo menos, que engolir o «elefante Trump», por muitas indigestões isso possa causar (veja-se o clima de tensão, quase violência, que está a criar-se nos comícios de Trump).

Mas nesta estranhíssima corrida de 2016, o melhor mesmo é não afastar qualquer cenário. Como Sherlock Holmes costumava dizer ao fiel ajudante Watson: «Exclua o impossível e o que restar, por muito improvável que lhe possa parecer, será a resposta».

Fragilidades no superfavoritismo de Hillary

No campo democrata, a questão da nomeação está resolvida: não restam dúvidas de que Hillary Clinton vai mesmo ser investida como candidata presidencial na convenção de Filadélfia.

O avanço da ex-secretária de Estado sobre o senador socialista do Vermont é já suficiente para ser seguro atribuir, de forma tão precoce, esse resultado final.

Hillary tem já garantidos 1.231 delegados (766 por votação e 465 superdelegados); Sanders fica-se pelos 576 (551 por votação e apenas 25 superdelegados).

Clinton venceu já em 13 estados (Iowa, Nevada, Carolina do Sul, Alabama, Arkansas, Geórgia, Massachussets, Tennessee, Texas, Virgínia, Samoa Americana, Luisiana e Mississipi); Bernie ganhou em nove (New Hampshire, Colorado, Minnesota, Oklahoma, Vermont, Kansas, Nebraska, Maine e Michigan).

Mas nem sempre os números dizem tudo.

Não fosse o enorme avanço que Hillary tem nos superdelegados, estaríamos neste momento a falar numa acesa disputa pela nomeação no lado democrata.

O discurso duro, frontal e corrosivo de Sanders está a passar essencialmente em dois eleitorados importantes para a «grande tenda democrata»: os jovens até aos 30 anos, especialmente os que têm alguma diferenciação académica e se sentem injustiçados pelo sistema; e ainda pelo eleitorado «white blue collar», excluído da globalização, que perdeu nos últimos anos o seu emprego em «indústrias tradicionais» e não tem habilitações para poder reconverter-se à «nova economia», talhada para quem tem credenciais no mundo digital e não em indústrias pesadas.




A vitória de Bernie no Michigan (terreno que parecia ser favorável a Hillary) apanhou todos de surpresa. E foi a prova final das vulnerabilidades que a antiga Primeira Dama e senadora por Nova Iorque tem em segmentos em que terá que vencer claramente na eleição geral.

É certo que Hillary também já obteve vitórias esmagadoras (50 pontos de vantagem na Carolina do Sul, quase 70 por cento de avanço sobre Sanders no Mississipi…), mas também é verdade que o que está a garantir a Clinton o caminho para a nomeação é a fidelidade do voto negro, dos latinos e dos «aparelho» do Partido Democrata.

Chega para obter a nomeação contra o desalinhado Sanders. De acordo com as sondagens, também chegará para bater Trump na eleição geral.

Mas Hillary terá, nos próximos meses, que conseguir descolar da imagem de uma candidata «do sistema», demasiado comprometida com o «business as usual» de Washington.

Em tempos em que o populismo rende tanto eleitoralmente, não será de excluir que Donald Trump consiga apanhar parte dos votos anti-sistema que Sanders está a obter.

Nunca foi tão difícil antecipar os resultados finais de uma eleição presidencial na América. 

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