22 de agosto de 1993. Faz hoje 20 anos. Estava a voltar de duas semanas de férias com os meus pais e as minhas irmãs em Lagos, no Algarve, enquanto o António de Sousa, que ainda não conhecia pessoalmente, fazia a Volta a Portugal para «A Bola».
Um mês antes, no final de julho de 1993, um golpe de sorte, misturado com uma certa ousadia inconsciente de quem tinha acabado de fazer 15 anos, proporcionou-me a oportunidade profissional que sonhava na altura: começar no jornalismo na área do futebol. Ainda por cima, em «A Bola».
Nos dois anos anteriores, em 1991 e 1992, começara a construir um desejo profundo de ser jornalista ligado ao futebol, na sequência de dezenas de intervenções que fiz, numa base semanal, na Antena 1, no mítico programa «Livre e Direto».
Dava às sextas à noite, primeiro entre as 22.30 e a meia-noite, depois passou para o horário 21-23h. Coordenado pelo Costa Martins e pelo António Pedro, era o único espaço da rádio portuguesa que permitia a participação dos ouvintes. Os fóruns e as antenas abertas só apareceriam uns anos depois.
No «Livre e Direto» participavam outros jornalistas que vim a conhecer e que mal sabia que, tempos mais tarde, se tornariam meus amigos: o Carlos Daniel, o Fernando Eurico, o Rui Almeida, o Óscar Coelho, o Rui Cerqueira, o Sérgio Teixeira, o Fernando Maciel, o Eduardo Gonçalves.
Uma visita aos antigos estúdios da RDP, na Cândido dos Reis, em setembro de 1992, guiada pelo Carlos Daniel, tinha-me feito decidir: «Quero mesmo ser jornalista».
No verão seguinte, o destino deu-me o empurrão que precisava.
No final de uma semana na Escola de Futebol Humberto Coelho, para onde ia com frequência durante as férias escolares, uma equipa de treinadores/monitores da escola (composta por antigas glórias como Bastos Lopes, Seninho, Nené, «Zé Gato» e o próprio Humberto Coelho) defrontava, num dos campos de treino do Estádio Nacional, no Jamor, a equipa de futebol da redação de «A Bola» em Lisboa.
E o tal golpe de sorte, doseado com uma ousadia inconsciente, foi ter ido ter, no final da partida entre amigos, com o Afonso de Melo, já na altura uma referência, cujas crónicas devorava nas páginas do jornal. «Adoro os seus textos sobre Águeda e a forma como consegue juntar futebol com o gosto pela escrita e pela literatura. Gostava, um dia, de conseguir escrever assim».
Ainda suado do encontro que os antigos futebolistas venceram facilmente (4-1, creio), o «ponta-de-lança» da equipa de «A Bola» achou piada ao miúdo e, vendo o Joaquim Rita, então chefe de redacção do jornal e capitão da equipa que acabara de ser derrotada pelos antigos craques a sério, chamou: «Ó chefe, chegue aqui, por favor. Apresento-lhe um futuro jornalista que acabei de conhecer…»
Parece uma cena de filme, mas foi exatamente assim que começou a minha história no jornalismo, que hoje completa 20 anos.
Nos cinco minutos que demora percorrer a distância entre aquele campo de treinos do Jamor e os balneários do Estádio Nacional tracei o início de um percurso que, até hoje, marcou todas as escolhas da minha vida profissional.
O meu arranque de carreira ficou para sempre ligado ao futebol: não só nas palavras, na escrita, mas também na vivência. Todo o meu imaginário infantil e de adolescência teve a ver com o mundo do futebol e poder ter começado a minha carreira profissional desta forma foi um privilégio. Uma sorte.
Ainda hoje, duas décadas depois, não consigo dizer o que passou exatamente pela cabeça do Afonso para afirmar naquele momento, com tanta certeza, que eu iria ser jornalista.
Muito menos saberei explicar a resposta do Joaquim Rita, que, tal como o Afonso, não me conhecia de lado nenhum: «E vai ser mesmo! Moras no Porto, não é? Então, quando saíres daqui da Escola Humberto Coelho e voltares a casa, ligas-me lá para o jornal e eu indico-te a pessoa com quem terás que falar para começares a fazer umas coisitas para «A Bola». Mas atenção que os estudos estão em primeiro lugar!»
Estávamos a chegar aos balneários, despedimo-nos com essa indicação que, para mim, parecia demasiado boa para ser verdadeira: o então chefe de redação de «A Bola» tinha-me dito, a mim, um puto de 15 anos que não conhecia de lado nenhum, que iria começar a escrever para o jornal desportivo que marcou gerações de portugueses.
Tentei refrear expetativas, afinal de contas podia ter sido só uma gentileza sem futura consequência. Mas mal voltei ao Porto fiz o telefonema e, do outro lado da linha, ouvi a confirmação: «Ah, Germano, lembro-me claro! Aponta o número da redação do Porto. Vais falar com o António de Sousa e o João Freitas, que são os responsáveis pela redação, mostras o que já escreveste e começas a fazer umas coisitas».
O sonho, afinal, parecia que não terminava ali. Dias depois fui à redação do Porto de «A Bola», na altura na Rua Pinto Bessa, a dois passos da estação de Campanhã, com uns textos para mostrar, escritos em casa sobre jogos de futebol transmitidos na TV. «O António de Sousa está na Volta a Portugal, mas eu fico com isso e vou dando uma olhadela. Pode fazer aos domingos uns jogos da Divisão de Honra, damos cada vez mais espaço. Na segunda quinzena de agosto, volte cá e resolvemos isso», apontou-me o João Freitas.
Era mais um passo em frente. Sentia que o sonho ia mesmo transformar-se em realidade. Fui para o Algarve com mil ideias na cabeça e uma ansiedade enorme de que tudo se confirmasse quando regressasse ao Porto.
Nunca numas férias tive tanta vontade que o tempo passasse mais rápido.
E o calendário chegava, finalmente, a 22 de agosto de 1993. Faz hoje duas décadas, entrei pela segunda vez na sala em Pinto Bessa, mas desta vez já para começar a trabalhar. Foi o meu primeiro dia no jornalismo.
O António de Sousa, regressado da Volta, já tinha recebido informações sobre mim do Joaquim Rita e do João Freitas. E já tinha lido uns textos que eu lá tinha deixado, antes de ir para o Algarve. «Gostei do que li, mas tem que ter a noção que ainda não mostrou nada. É um grande jornal, temos que ser cautelosos, tem que ir com calma. Vai começando a fazer uns joguitos, umas notícias, a colaborar nos dias em que as aulas lhe permitirem. O mais importante são os estudos. Pode começar já hoje, se quiser».
Queria, é claro.
Estávamos em 1993. «A Bola», na altura, era a «Bíblia». O que lá se escrevia parecia ter o dom de transformar-se em letra de lei e o jornal ainda reunia uma aura especial, fruto de décadas de liderança e de uma influência impressionante na formação de gerações de portugueses.
Ainda hoje se diz isso, mas à época dizia-se com muito mais propriedade e frequência: «Aprendi a ler com A Bola».
O jornal saía quatro vezes por semana (às segundas, quintas, sábados e domingos) e era publicado em formato «broadsheet» (assim em tamanho grande, como os grandes jornais americanos e ingleses ainda o fazem).
Durante alguns anos, muito depois da passagem a tablóide, sonhava com alguma regularidade que «A Bola» tinha voltado a ser publicada nesse formato.
O «Record» também saía quatro vezes por semana. A «Gazeta dos Desportos», vejam lá, ainda existia (e até haveria de testar, uns meses depois, um regresso ao «broadsheet» que, infelizmente, acabaria por ser apenas a última etapa antes do fecho).
O «Norte Desportivo» estava em fase de regresso, depois de uns anos sem ir para as bancas. O «Primeiro de Janeiro» ainda estava aí para as curvas.
As televisões davam um ou dois jogos de futebol por semana, quando davam. Não havia SportTV. A SIC iniciara emissões dez meses antes, a TVI estava ainda em fase experimental e só haveria de começar a emitir regularmente em outubro desse ano de 1993.
Ah! E, claro, talvez mais relevante do que isto tudo, para percebermos como há 20 anos as coisas eram diferentes: não havia internet e muito pouca gente (quase ninguém) tinha telemóvel.
Numa frase, era outro mundo. Era mesmo.
Neste planeta distante em que vivíamos em 1993, o tempo corria mais devagar. O tempo jornalístico. O tempo de leitura. E, sobretudo, o tempo de produção.
Uma notícia podia preparar-se e guardar-se ao longo de, pelo menos, um dia. A reação só chegaria no dia seguinte ou até mais tarde (convém explicar que, durante ano e meio, entre agosto de 1993 e fevereiro de 1995, trabalhei num’ «A Bola» quadrissemanária e não diária).
Recordo, no verão de 1994, uma Volta Aérea a Portugal com uma máquina de escrever pesada, com a qual escrevia as peças que enviava, por faxe, para a redação.
Um jornalista, naquela realidade, tinha mais importância do que tem hoje. Havia menos oferta. Menos contraditório da parte de quem lia. Muito raramente, lá chegava uma carta de um leitor a elogiar ou a criticar, com uma eventual correção ou sugestão do que havia sido publicado dias ou semanas antes.
Sem o imediatismo da net, dos comentários online, das publicações de Facebook, a distância entre o emissor e o recetor era enorme. Parecia que o que se escrevia era sagrado.
Hoje não é assim e ainda bem que não é assim. Há mais proximidade. Na relação com quem nos lê, há maior possibilidade de correção, de enriquecimento do que já se tem.
Mas é também verdade que o jornalismo perdeu uma certa aura, um mistério que a distância e o segredo lhe conferiam. A magia que, em miúdo, sentia pela rádio foi-se perdendo com as versões na net dos programas. As vozes que ouvia, afinal, têm uma cara que dá para ver à distância de um clique.
Os jornais, então, passaram por muito nestes 20 anos. Cortes, reduções de meios, menos gente, menos independência, uma concorrência difícil de combater com o imediatismo da net.
No «flashback» de 20 anos de carreira, guardo muitas recordações boas e uma ou outra má. O mais importante é que as coisas positivas são, de longe, muito superiores em número, em significado e em intensidade. De longe.
Nestas duas décadas, assisti por dentro à passagem para diário e à mudança de formato para tablóide do jornal «A Bola» (em fevereiro de 1995). À criação do primeiro jornal desportivo online, o Maisfutebol (em junho de 2000). Ao aparecimento em força dos sites dos media tradicionais (1999, 2000, 2001, 2002), ao surgimento dos blogues (2003), dos vídeos na net (2003, 2004), do YouTube (2005), das versões dos jornais para tablet/ipad/smartphone (2010 até agora).
Em 1993, havia três canais generalistas e estava a aparecer um quarto. A TV por cabo só apareceu em força, com a sua multiplicidade de canais e escolhas, nos anos seguintes.
Nestes 20 anos, tive várias oportunidades de carreira. A umas disse «sim» e soube agarrar; a outras, por algum motivo, tive que dizer «não».
Assim de repente, e correndo o risco de estar a ser injusto para alguém que me esteja a escapar (e, se assim for, peço desde já desculpa), agradeço sobretudo ao Joaquim Rita, ao Afonso de Melo, ao António de Sousa e ao João Freitas (responsáveis pela minha entrada em «A Bola» em agosto de 1993); ao Luís Sobral, por me ter convidado a ser um dos fundadores do Maisfutebol, em junho de 2000; ao João Bonzinho, por me ter desafiado a voltar a «A Bola» em maio de 2003; ao Tiago Craveiro, pelo convite para ser diretor de comunicação da Liga, em novembro de 2010; ao Vítor Serpa, pela terceira incursão em «A Bola», em junho de 2012; e de novo ao Luís Sobral, pelo regresso ao Maisfutebol, em novembro de 2012.
Nestes 20 anos, passei sete na primeira vez em A Bola (1993-2000); três na primeira vez no Maisfutebol (2000-2003); outros sete na segunda vez em A Bola (2003-2010); um ano e meio na Liga (novembro 2010-maio 2012), com o prazer de ter trabalhado com enormes profissionais, com o dr. Fernando Gomes à cabeça; cinco meses na terceira vez em A Bola (maio-outubro 2012); e tenho o privilégio de estar há oito meses na segunda passagem pelo Maisfutebol, agora também com uma rubrica no site da TVI24.
Nestas voltas que a vida dá em duas décadas, fiz o que, de outro modo, certamente, nunca faria: estive num Mundial (Alemanha-2006), na primeira fase de um Europeu (Suíça em 2008), numa final da Intercontinental (Japão-2004), numa Confederações (Alemanha-2005) e em inúmeros jogos europeus e estágios de clubes, alguns deles no estrangeiro (recordo sobretudo Clairefontaine, 2001, da primeira vez no Maisfutebol, e Marienfeld, 2008, da segunda vez em A Bola).
Pude escrever dois livros sobre aquele que é, a par do futebol, o meu tema preferido, a política americana («Histórias da Casa Branca», maio 2010, e «Por Dentro da Reeleição», abril 2013, ambos publicados na Prime Books, pelo Jaime Cancella de Abreu).
Com os livros, fui incluindo na minha profissão a minha outra grande paixão. E guardo entre os melhores momentos destes 20 anos as apresentações na companhia de referências de sempre: General Loureiro dos Santos, Ricardo Alexandre, Francisco Sena Santos, Carlos Daniel, Álvaro Costa.
Pude acompanhar, nos EUA, a fase decisiva da reeleição de Barack Obama e tenho, hoje, redobradas certezas que fiz a escolha certa.
Este é essencialmente um texto sobre o passado, mas a experiência nos Estados Unidos e a análise de muitos anos acumulados sobre a realidade americana fizeram-me olhar cada vez mais para o futuro e menos para o passado.
Nada melhor, por isso, do que comemorar estes 20 anos de carreira em dia de plena transição para um novo site do Maisfutebol, numa versão mais profunda e interativa.
Ser jornalista é, nos tempos que correm, uma profissão de risco. O risco de perder o emprego. O risco de não voltar a ter emprego. O risco de ser pressionado. O risco de estar numa atividade em vias de extinção enquanto forma de ganhar a vida. Tantos outros riscos.
Essa é uma visão possível das coisas. A outra é sentir, como sempre senti, que mais do que uma profissão, ser jornalista é uma condição. Um modo de estar na vida, uma forma especial de olhar para o que nos rodeia. De analisar, de procurar. Custa muito. É cansativo. Dá cabo da paciência, às vezes. Mas para quem, como eu, continua a encará-la como um privilégio continua a ser a mais bela profissão do Mundo.
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