sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Histórias da Casa Branca: a cabeça livre de Michelle Obama

TEXTO PUBLICADO NO SITE TVI24.IOL.PT, A 30 DE JANEIRO DE 2015:


Michelle Obama fez bem ou fez mal em aparecer de cabeça descoberta no funeral do Rei Abdullah, da Arábia Saudita?
 
A polémica estalou nos últimos dias e até houve quem comparasse a opção da Primeira Dama dos EUA com as vestes excessivas da mulher do ministro dos Negócios Estrangeiros português na visita ao Irão.

É daqueles temas em que se torna difícil encontrar a posição mais sensata.
 
Se, por um lado, o argumento da lei e dos hábitos locais pode ter colhimento numa situação como aquela (afinal de contas, só vai a um funeral quem quiser e o respeito por quem morre é um fator importante), por outro há uma posição que se firma por parte dos mais altos representantes dos Estados Unidos.
 
Michelle, Primeira Dama com agenda fortemente focada nos direitos individuais, no papel das mulheres na sociedade, pode ter querido aproveitar o momento para traçar fronteiras.
 
Do mesmo modo que o casal Obama já aproveitou a popularidade em África para promover a responsabilidade nos comportamentos sexuais no continente negro, Michelle e Barack sabem que a América ainda tem uma palavra a dizer em temas como a emancipação das mulheres nas sociedades muçulmanas.
 
Amy Davidson, na New Yorker, vai ao ponto: «Michelle Obama foi ao funeral do Rei Abdullah. Envolveu, como acontece nos funerais, uma viagem inesperada, que até envolveu uma alteração à presença na Índia. Mas a Primeira Dama aparecia da forma apropriada. Usou calças pretas, uma blusa azul de alta costura e um casaco. Debaixo do seu pescoço, apenas as suas mãos estavam cobertas e ela fez questão de não as oferecer quando os homens sauditas, na receção realizada, a ignoraram ou a criticaram entredentes. Ela não usou um lenço na cabeça; provavelmente podia ter arranjado um quando estava na Índia, mas, na verdade, porque é que ela teria que o fazer? As mulheres sauditas têm que cobrir as suas cabeças e muitas vezes até cobrem as caras, também; as mulheres estrangeiras na Arábia Saudita, no entanto, não são obrigadas a isso e quando Laura Bush e Hillary Clinton as suas cabeças estavam destapadas».

Mas também é verdade que há precedentes apontando para o contrário: em 1979, a Raínha Isabel II, de Inglaterra, usou um lenço a tapar a cabeça na visita ao Golfo; a própria Michelle tapou os ombros na visita ao Vaticano, em 2009, quando foi recebida, ao lado do marido, pelo então Papa Bento XVI. E no ano seguinte, em 2010, numa visita a uma mesquita na Indonésia, tapou, também ela, a cabeça.

O argumento da imprevisibilidade que um funeral tem por natureza (para mais com a morte do Rei Abdullah a ter acontecido em plena viagem presidencial de Obama na Índia) reforça a tese de que não foi um ato ostensivo e premeditado por parte da Primeira Dama.

No excelente artigo na New Yorker, Amy Davidson acrescenta: «Em qualquer ocasião e lugar, há formas de  nos adaptarmos com o que temos, mantendo sempre a educação e garantindo que ninguém se sente ofendido. Isso tem a ver com modo, com gostos e com educação. Michelle Obama jogou com isso, com as suas calças largas e seu casaco longo e isso bastou».

Fim de polémica ou nem por isso?

Seja qual for a intenção de Michelle com a escolha da cabeça destapada, a verdade é que a relação EUA/Arábia Saudita está para durar como uma das alianças mais duráveis, mas também mais ambíguas, do contexto internacional. Mesmo com tantas e tão visíveis diferenças de mentalidade.

O próprio Barack Obama admitiu, em entrevista à CNN, antes da visita a Riade: «Às vezes temos que equilibrar a nossa necessidade de falar sobre direitos humanos com as preocupações imediatas que temos em temas como a contenção do terrorismo ou lidar com a estabilidade regional».

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Histórias da Casa Branca: Obama entre Piketty e os dogmas republicanos

TEXTO PUBLICADO NO SITE TVI24.IOL.PT, A 27 DE JANEIRO DE 2015:



«Este discurso vai na claramente na direção certa ao impor um mínimo impositivo para os mais ricos a fim de investir na educação»
THOMAS PIKETTY, autor do «best-seller» «O Capital no Século XXI»
 
«A realidade é que o discurso sobre o Estado da União foi muito bom, mas o presidente Obama tem uma ideia para torná-lo ainda melhor: cobrar impostos de Wall Street e dos super-ricos para que o trabalho da classe média seja mais rentável. É Piketty com sotaque norte-americano»
MATT O’BRIEN, Washington Post
 
«Onde é que está o dinheiro para todas aquelas boas intenções do Presidente?»
RAND PAUL, senador do Kentucky, possível candidato presidencial republicano
 
«O presidente Obama disse muito bem: ‘As coisas vão melhor para este país quando todo mundo tem oportunidades, todo mundo contribui com sua parte e todo mundo joga sob as mesmas regras’»
ELIZABETH WARREN, senadora do Massachussets, possível candidata da ala esquerda nas primárias do Partido Democrata
 

Terá sido um dos melhores «Estados da União» para Barack Obama, em ambiente de euforia económica e com a noção de que os EUA voltaram a liderar, ao apresentarem níveis de crescimento superiores aos «BRIC».
 
Como o Presidente amplamente repetiu «desde 2010, os Estados Unidos criaram mais empregos do que Japão, Europa e todas as economias avançadas juntas».
 
A mensagem que Obama queria lançar no seu penúltimo State of The Union parece ter passado: o receio de que «os melhores dias da América poderiam ter já estado para trás» já não existe, como no início da sua presidência.

Mesmo os mais aguerridos opositores desta administração (e há muitos) admitem que há melhorias económicas, embora ainda estejamos longe de ver um consenso sobre a dimensão real desse crescimento no «americano comum».

Ora, e foi precisamente esse ponto que dominou a intervenção do Presidente, no discurso de dia 20 à noite, perante um Congresso agora totalmente dominado pelos republicanos.

Obama não se limitou a festejar os melhores números económicos da última década: apontou um plano para que essa melhoria seja sentida pelo grosso da população.

E, perante sorrisos amarelos de muitos congressistas republicanos, questionou em jeito opinativo: «Isto são boas notícias, não são meus senhores?»

O problema é que o plano do Presidente, para muitos com o fato de «Robin Hood» vestido, vai contra os dogmas mais inamovíveis de quem agora controla na totalidade as duas câmaras do Congresso, depois das eleições intercalares de novembro.

Os republicanos mantêm-se fiéis ao «mantra» de estarem contra qualquer subida de impostos: mesmo para os mais ricos (no caso de alguns republicanos... «sobretudo para os mais ricos»).

A ideia pode parecer absurda para quem segue uma lógica de progressividade fiscal (paga mais quem ganha mais), mas nos EUA há correntes, com força e «lobby» junto de muitos congressistas, que acreditam que, para que a economia tenha dinheiro, há que aliviar os mais ricos, de modo a que estes tenham todas as condições para investir e, dessa forma, criar empregos.

O que Barack Obama quis dizer perante o Congresso, de forma muito clara e sonora, foi: a crise já passou, os EUA crescem a um ritmo muito satisfatório. Chegou, por isso, a altura, do estado central intervir fortemente e, pela via fiscal, assumir alguns princípios sólidos para a visão de sociedade que pretendemos corporizar: apoio aos mais necessitados, inventivo a quem quer estudar, incentivo a quem quer arriscar, pôr mais dinheiro no bolso das famílias, sobretudo daquelas que ganham menos e têm mais filhos.

Nada que nos surpreenda muito deste lado do Atlântico (são, em termos gerais, estes os princípios que regem os escalonamentos fiscais nos sistemas europeus), mas algo que ainda está em profunda discussão na socidade americana, mais avessa ao peso do Estado e à intervenção federal para corrigir as assimetrias sociais.

Os elogios de Thomas Piketty, autor do «best seller» «O Capital no Século XXI» ( «este discurso vai claramente na direção certa») confirmam que a proposta de Barack Obama coloca esta intervenção do Presidente como a prova definitiva de que, neste momento, habita a Casa Branca alguém com uma agenda liberal (do ponto de vista americano), com uma ideologia de esquerda (algo que o seu discurso de posse no segundo mandato, a 21 de janeiro de 2013, parecia já ter anunciado, embora os meses seguintes não o confirmassem por completo).

Os aplausos de Elizabeth Warren também são significativos: várias vezes, nos últimos tempos, a combativa senadora democrata da Massachussets, campeã de uma certa «consciência de esquerda» no Congresso, criticou o Presidente por ter cedido demasiado às pressões republicanas. Desta vez, a senadora Warren gostou do que ouviu da boca do Presidente.

E agora, republicanos?

Dificilmente a «reforma fiscal» de Obama passará no Congresso. Isso seria um precedente enorme no «mantra» republicano. Mas há dinâmicas novas a avaliar na direita americana.

As duas candidaturas que se perfilam como as mais fortes nas primárias do Partido Republicano (Jeb Bush e Mitt Romney) já têm dado sinais de algumas preocupações na área da coesão social e no apoio aos menos favorecidos (certamente cientes de que sem apoios dessas áreas dificilmente terão hipóteses na eleição geral com Hillary).

Falta saber que via dominará o comportamento republicano no Congresso a partie de agora: se uma posição mais centrista e negociadora (Jeb Bush, Mitt Romney, Chris Christie, sendo que nenhum deles é congressista, mas todos têm apoiantes republicanos nas duas câmaras de Capitol Hill) ou a lógica dogmática que tem prevalecido, mais à direita, influenciada pelo Tea Party (Rand Paul, Paul Ryan, Ted Cruz. Mike Huckabee).

Cabe, assim, uma palavra de enorme importância a John Boehner, o «speaker» republicano da Câmara dos Representantes e, sobretudo, a Mitch McConnell, o líder da nova maioria republicana no Senado.

Ambos têm vontade de algum tipo de compromisso (não querem, por certo, mais dois anos de obstrução completa), mas têm também receios do que a direita do partido republicano vai querer impor.

Pelo meio, será de acompanhar de perto as futuras posições e votação de Marco Rubio, senador republicano da Florida: já foi «tea party darling», já tentou moderar-se na Imigração, voltou a juntar-se aos extremistas e agora, talvez de olho numa futura candidatura presidencial, defende propostas na área fiscal que, embora não apontem para a taxação dos mais ricos como quer Obama, favorecem boa parte da classe média (sobretudo a ideia de incluir os benefícios fiscais no salário mensal).

Entre as ondas de choque do discurso de Obama no State of The Union, as ambiguidades republicanas sobre como aproveitar a maioria no Congressso e a corrida presidencial que está prestes a começar, os próximos tempos na política americana vão ser bem interessantes de seguir.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Histórias da Casa Branca: a mais louca corrida do Mundo

 TEXTO PUBLICADO NO SITE TVI24.IOL.PT, A 23 DE JANEIRO DE 2015:


Estamos a um ano do arranque oficial da corrida presidencial nos EUA: os «caucuses» do Iowa são a 18 de janeiro de 2016 e as votações em New Hampshire, primeiro estado com modelo de «primárias» estão agendadas para oito dias depois, 26 de janeiro do próximo ano.
 
É certo que Barack Obama ainda tem quase dois anos de mandato pela frente (termina funções a 20 de janeiro de 2017), mas a partir de agora as atenções sobre questões presidenciais norte-americanas ficam divididas por dois campos.
 
Por um lado, os trunfos finais que o 44.º Presidente parece disposto a querer jogar no tempo que lhe resta na Casa Branca; por outro, os candidatos que, nos próximos meses, se forem perfilando e avançando para a obtenção da nomeação presidencial de democratas e republicanos.
 
Se as eleições presidenciais de novembro de 2016 fossem hoje, era bem provável que a disputa viesse a ser protagonizada por Hillary Clinton e Jeb Bush.
 
Em função do que dizem as sondagens, são esses os «frontrunners» de democratas e republicanos.
 
Mas quem acompanha minimamente a política americana sabe que isto ainda pode dar uma grande volta.
 
Mais do lado republicano, é certo. A luta nos democratas está de tal moco centrada no avanço esmagador de Hillary Clinton (entre 50 a 60 pontos, algo que não parece reversível num ano, mesmo na política americana),
 
Mesmo assim, é de esperar que apareça uma «sensibilidade» à esquerda do «core» democrata, que represente quem considere que o Presidente Obama cedeu demais junto dos republicanos, nestes dois mandatos de presidência democrata.
 
Essa «sensibilidade» poderá ser representada pela senadora Elizabeth Warren, do Massachussets, uma espécie de «campeã» da esquerda americana no Capitólio, ao falar claro e em tom direto e agressivo junto dos interesses de Wall Street e até do Presidente Obama (de quem já foi forte apoiante, sendo agora algo crítica).
 
O senador independente, mas na prática democrata, Bernie Sanders, do Vermont, pode ser outro protagonista dessa corrente à esquerda do «mainstream» democrata (boas ideias em matéria fiscal e social), embora tenha muito menos condições de avançar como alternativa do que terá Elizabeth Warren (mais conhecida a nível nacional e com mais apoios).
 
Candidatos democratas duma área mais centrista só terão alguma hipótese se, por razões que neste momento não se descortinam, Hillary Clinton falhar: o «vice» Joe Biden (possível herdeiro político da presidência Obama, mas com problemas de idade e estilo); o ex-governador Martin O’Malley, do Maryland; o jovem hispânico Julian Castro, filho de mexicanos, antigo «mayor» de San António, Texas e atual secretário da Habitação da Administração Obama; o governador Andrew Cuomo, de Nova Iorque, talvez o mais provável beneficiário, num cenário improvável de não avanço de Hillary.
 
E ainda poderá haver alguém a aparecer, no campo democrata, à direita do «eixo Obama-Hillary»: Jim Webb, antigo membro da administração Reagan, senador pela Virgínia, um dos estados-chave das corridas presidenciais.
 
Ao contrário do que acontece no campo democrata, em que há a superfavorita Hillary Clinton, a corrida à nomeação republicana promete ser longa e imprevisível.

Outro Bush?
 
Jeb Bush, filho e irmão dos últimos dois presidentes republicanos, antigo governador da Florida, surge como o candidato mais viável nesta altura. Tem algum avanço nas sondagens, mas nada que possa ser considerado definitivo.

Diferente do irmão, mostrou na Florida ser um republicano moderado, com ideias mais próximas dos democratas na área da Imigração (é casado com uma hispânica), o que lhe poderá provocar problemas na época de primárias (mas que lhe será muito útil na eleição geral, se lá chegar).
 
Já abandonou os cargos que tinham no setor privado (como consultor do Barclays ganhava mais de um milhão de dólares/ano) e tudo indica que vai mesmo avançar nos próximos meses.
 
Quem lhe poderá tirar a nomeação? Talvez Mitt Romney, nomeado em 2012, que perdeu a eleição geral para Obama, mas dá mostras de querer tentar terceira corrida. Em 2008 foi segundo, atrás de McCain. As sondagens não são más para ele, apontam a tal necessidade dos republicanos escolherem um nome da ala mais centrista e não muito à direita. Mas têm-se multiplicado as vozes que avisam o ex-governador do Massachussets para o erro que poderá ser uma nova tentativa, colando-lhe o rótulo de «loser». «Romney não deve candidatar-se, isso seria voltar para trás. O Partido Republicano tem outras soluções nesta fase», avisa George Will, na FOX.

A América não costuma ser um país de retrocessos, mas também é verdade que, em eleições presidenciais, já assistimos a «comebacks» notáveis...

Ainda numa área com boa possibilidade de captação de votos ao centro e até a algum setor democrata, pode aparecer Chris Christie, o popular e carismático governador da Nova Jérsia. Com fama de excessivo e credenciais de liderança, provou na catástrofe de supertempestade de dias antes da eleição de 2012 que é capaz de dialogar com o outro lado do campo político (e isso pode ser importante para os próximos anos da política americana).

Com menos hipóteses de nomeação, porque muito à direita no espetro político para uma eleição presidencial, estão outros nomes que se preparam para avançar: o ex-governador do Arkansas, Mike Huckabee; o senador pelo Kentucky Rand Paul; o senador do Texas, Ted Cruz; o senador da Florida, cubanodescendente, Marco Rubio; o ex-governador do Texas, Rick Perry.

Outros possíveis candidatos do lado republicano, mas não sendo muito provável que avancem, são Paul Ryan, congressista do Wisconsin e vice do ticket de Romney em 2012; Ben Carson, neurocirurgião negro; Scott Walker, governador do Wisconsin, que obteve boa vitória em novembro passado.

Nos próximos meses assistiremos, por certo, aos primeiros avanços oficiais e a grandes alterações na dinâmica da corrida.

O recente discurso de Obama no Estado da União, ao lançar desafio ao Congresso republicano de taxar os mais ricos e beneficiar a classe média para «uma economia que funcione para todos», pode, aliás, ser trunfo para Hillary na nomeação e, sobretudo, na eleição geral: é que a ex-secretária de Estado tem defendido, nos últimos anos, precisamente essa via e reforçou isso mesmo na reação ao discurso do Presidente: «Ele apontou o caminho para uma economia que funcione para todos», comentou Hillary, a seguir ao State of The Union 2015.

Para já, pelo menos, Hillary e Jeb partem na frente: novo duelo Clinton/Bush, 24 anos depois de um jovem governador do Arkankas derrotar, em 1992, o Presidente republicanos em funções?

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Histórias da Casa Branca: uma economia assente na classe média

TEXTO PUBLICADO NO SITE TVI24.IOL.PT,  A 21 DE JANEIRO DE 2015:



«Esta noite, viramos a página. A sombra da crise passou e o Estado da União é forte»

«Neste momento de mudança económica da nossa história, este país tomou medidas fortes no sentido se adaptar a novas circunstâncias e para assegurar que todos tenham oportunidades»

«O nosso desemprego está abaixo do que era antes da crise financeira»

«O veredicto é claro: a economia assente na classe média funciona. Expandir as oportunidades funciona»

«Desde 2010, a América pôs mais gente de volta ao trabalho do que a Europa, Japão e todas as economias avançadas juntas»

«Os custos dos cuidados de saúde estão em mínimos de 50 anos. Gente, isto são boas notícias, não são??»

«Vimos o mais rápido crescimento económico da última década, os nossos défices cortados em dois terços, a bolsa a duplicar»

«Desenhámos novos empregos para as nossas costas. Nos últimos cinco anos criámos mais de 11 milhões de empregos»

«Estamos mais livres do petróleo estrangeiro como nunca estivemos nos últimos 30 anos»

«Lideramos melhor quando combinamos poder militar com diplomacia forte»

«Nenhuma nação estrangeira, nenhum hacker pode ser capaz de bloquear as nossas redes, roubar os nossos segredos comerciais ou invadir a privacidade das famílias americanas, especialmente das crianças»

«Demos aos nossos cidadãos e às nossas escolas, infraestruturas e a Internet – ferramentas que precisaram para chegar tão longe como o seu esforço lhes permitiu»


«Estas ideias não farão toda a gente rica. Essa não é tarefa de um governo. Mas, sabem, são coisas que vão ajudar muito»

«Há demasiadas pessoas que beneficiam do gridlock. Mas continuo a não ser cínico. Acredito mesmo que somos só um povo»

BARACK OBAMA, Presidente dos Estados Unidos, discurso sobre o Estado da União 2015


Barack Obama aproveita a recuperação económica para acelerar a sua agenda ideológica.
 
No seu penúltimo discurso sobre o Estado da União, o primeiro perante um Congresso totalmente ao hostil (depois da arrecadação pelos republicanos no Senado), o Presidente exortou as duas câmaras do Capitólio a acompanhá-lo no plano de taxar os 1% mais ricos e as principais empresas financeiras, de modo a financiar mais apoios à classe média e ajuda aos mais necessitados.
 
Premiar o trabalho, taxar os capitais de maior risco, reforçar a ideia de que o crescimento económico tem que ter mais consequências no benefício do americano comum.
 
Foi neste tom que Barack Obama falou no dia que marcou o início do seu sétimo ano de presidência (fez esta terça seis anos que tomou posse pela primeira vez e faltam exatamente dois anos para abandonar a Casa Branca).
 
Os americanos parecem acompanhar a ideia do Presidente.
 
Sondagem da CBS News, à pergunta sobre se o governo deve «fazer mais para reduzir o fosso entre os mais ricos e os mais pobres», 55% disseram que sim e apenas 39% consideraram que não.
 
Mais uma vez, o tema divide as opiniões partidárias: entre os democratas, 80% acham que sim e apenas 15% apontam para o não; entre os republicanos, 29% disseram sim e uma maioria de 65% não. Entre os independentes, mais equilíbrio: 53% para o sim e 41% não.
 
A Educação e o apoio às crianças
 
Além do tema forte do combate à desigualdade, pela via de uma Reforma Fiscal (para já, pelo menos, com alterações significativas nos escalões fiscais), o Presidente aproveitou este State of The Union para reforçar aposta em questões como o apoio às crianças e programas com benefícios para estudantes e créditos, pela via orçamental, a famílias menos endinheiradas que tenham filhos.

A Economia está a ser o principal trunfo para esta estratégia do Presidente de pôr mais dinheiro no bolso do americano comum pela via fiscal. No último ano, foram criados três milhões de empregos (o melhor desempenho desde os anos 90, lembrou Obama) e no terceiro trimestre de 2014 registou-se crescimento de 5% (o melhor valor dos últimos 11 anos).
 
O ciberterrorismo e a ameaça do Estado Islâmico
 
Dias depois de um ataque informático do Estado Islâmico ao US Central Command, principal estrutura do exército americano (durante meia hora, foi «proclamado» um suposto cibercalifado nas páginas das redes sociais do Centcom), o Presidente Obama endereçou também a questão da cibersegurança, dando importante enfoque ao tema.
 
Agora que os republicanos dominam o Senado (câmara essencial para aprovar questões de política externa), o Presidente fez questão de envolver o lado oposto na batalha comum contra o terrorismo islâmico e a defesa da segurança nacional.

Obama lançou frases fortes para tentar mostrar que a América está preparada para resistir ao ciberterrorismo, depois dos casos da Coreia do Norte/Sony e do tal ataque do «Daesh» ao Centcom: «Nenhuma nação estrangeira, nenhum hacker pode ser capaz de bloquear as nossas redes. Ninguém pode roubar os nossos segredos comerciais ou invadir a privacidade dos americanos»

O Presidente pretende a autorização do Congresso para usar a força contra o Estado Islâmico, o que indica a possibilidade de se estar a preparar uma operação com o envolvimento de tropas no terreno (não necessariamente só americanas e por isso o Presidente falou em «coligação de forças»), ao contrário do que até agora aconteceu (desde setembro, a campanha de contra-terrorismo liderada pelos EUA prevê apenas ataques aéreos, o que não obrigou a autorização do Congresso).

Ainda sobre o combate ao «Daesh», Obama esclareceu que «os Estados Unidos apoiam a oposição moderada na Síria que nos possa ajudar nessa tarefa», deixando, assim, claro, que não admite uma aproximação a Assad para enfrentar o inimigo comum.

A visão de Obama sobre política externa implica uma «forma mais inteligente de assumir a liderança internacional».

«Liderámos melhor sempre que combinámos poder militar com diplomacia forte; quando equilibramos o nosso poder com construção de coligações; quando não deixámos que os nossos medos nos ceguem perante as oportunidades que este novo século nos oferece. E isso é exatamente o que temos feito agora, ao longo do globo -- e é isso que está a fazer a diferença».

O convidado vindo de Cuba
 
Um dos convidados especiais do Presidente foi Alan Gross, antigo prisioneiro americano em Cuba. Obama puxou dos galões, lembrou a dimensão histórica do acordo com Castro e exortou o Congresso de maioria republicana a tornar real o levantamento do embargo. 

«O acordo com Cuba respeita valores democráticos e acaba com um erro de 50 anos. A diplomacia é um trabalho de pequenos passos. E este pequeno passo pode ajudar a dar uma nova esperança ao povo cubano», insistiu o Presidente.

Obama reafirmou vontade de fechar Guantánamo, insistiu na tecla das alterações climáticas («2014 foi o ano mais quente de sempre. Sei que um ano não faz uma tendência, mas 14 dos 15 mais quentes aconteram nestes 15 deste século e isso já é uma tendência»), mostrou que se deve ter «cuidado no uso de drones» e lembrou, a terminar: «Não tenho mais campanhas para fazer, Sei isso porque ganhei as duas em que participei. (...) A minha única agenda é apenas a de fazer o que acredito ser o melhor para a América».
 

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Histórias da Casa Branca: Obama proporá uma União mais justa

TEXTO PUBLICADO NO SITE TVI24.IOL.PT, A 19 DE JANEIRO DE 2015:

Tornar real para o americano comum a recuperação económica que os Estados Unidos exibiram nos últimos anos e, muito em particular, nos últimos meses.
 
No penúltimo State of The Union (Estado da União) da sua presidência, Barack Obama vai exortar o Congresso a aprovar medidas que beneficiem 99% dos americanos, propondo aumentos fiscais para os 1% mais ricos, ou seja, casais que ganhem acima de 500 mil dólares/ano.
 
A tese, que dominou boa parte do primeiro mandato de Obama e foi sendo adiada pelo «gridlock» com os republicanos, teria tudo para voltar a emperrar, logo agora que o 114.º Congresso, iniciado há três semanas, tem ainda maior maioria republicana e, pela primeira vez na era Obama, também no Senado, já não apenas na House of Representatives.

Mas o crescimento económico acima do esperado (maior da última década nos EUA) dá ao Presidente trunfo suplementar para insistir na questão.
 
Em 2013, a ideia nova do SOTU (State of The Union) foi o acordo comercial e estratégico com a Europa (que ainda está a ser negociado); no ano passado, Obama lançou a questão do aumento do salário mínimo (já pegando nos bons índices económicos que se sentiam na altura nos EUA, entretanto reforçados em valores acima do esperado, nos 12 meses que passaram).
 
Para 2015, prevê-se, assim, que o Presidente defenda uma União mais justa, acelerando a Reforma Fiscal, que Obama acredita ter agora o seu momento certo: taxação dos 1% mais ricos de modo a obter 320 mil milhões de dólares na próxima década, a distribuir pelos restantes 99% dos americanos; taxação sobre o passivo das 100 empresas mais ricas do setor financeiro, para limitar a especulação.  
 
Nas semanas a seguir à derrota nas intercalares, Obama reagiu ao risco de insignificância política com ações presidenciais: Imigração, acordo com Cuba, acordo ambiental com a China, proposta ao Congresso de plano climático.
 
Essa atitude foi encarada pelos opositores como um abuso das funções presidenciais, que naquele sistema são enquadrados pelo contrapeso do Congresso.
 
Depois da reação agressiva, é de esperar que, terça à noite, Barack Obama seja mais conciliador na primeira vez que se dirigir a um Congresso totalmente dominado pelos republicanos.
 
Mas não uma conciliação defensiva: tudo indica, em função do que a Casa Branca já foi libertando nas últimas horas, que o Presidente desafie o Congresso a aprovar medidas que decorram dos bons dados económicos apresentados pelos EUA em 2014: trimestre com maior crescimento nos últimos 11 anos (julho/setembro, 5%), três milhões de empregos criados ao longo do ano (o melhor registo da última década), previsão de crescimento para 2015 de 3% (o maior da última década).
 
Ao mesmo tempo, a descida drástica do petróleo (estava há um ano acima dos 90 dólares, está a caminho dos 40…) está a permitir também uma baixa nos preços dos combustíveis, o que tem dado alívio adicional às famílias americanas.
 
No plano externo, o Presidente deverá pedir apoio republicano à sua luta contra o Estado Islâmico e, agora com mais foco, também contra o perigo terrorista em solo americano e europeu.
 
E manterá agenda ideológica em temas como independência energética, apoio a estudantes com dificuldades económicas e soluções para as alterações climáticas.

A exatamente dois anos de sair da Casa Branca (o seu sucessor toma possa a 20 de janeiro de 2017), e a um ano do último SOTU que endereçar, este talvez seja o Estado da União mais relevante para o legado que Barack Obama pretenda deixar.

Mais do que o Presidente «da mudança» ou da «reconciliação» (retórica de 2008), Obama pretende agora ficar como o líder que relançou a economia americana (os números estão aí a prová-lo) e que deu uma nova oportunidade à classe média.

Sobre essa batalha, talvez os resultados finais só sejam conhecidos no próximo mandato. Será tarefa para Hillary Clinton completar?

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Histórias da Casa Branca: Obama para 2015, riscos e oportunidades

TEXTO PUBLICADO NO SITE TVI24.IOL.PT, A 16 DE JANEIRO DE 2015:


Faltam pouco mais de dois anos para que Barack Obama deixe a Casa Branca.
 
A 20 de janeiro de 2017, tomará posse o 45.º Presidente dos Estados Unidos da América (que até pode ser a primeira mulher, caso vença Hillary Clinton).
 
Se a isto acrescentarmos que 2016 será o ano da eleição presidencial que definirá o sucessor de Obama (a partir de janeiro, época de primárias, depois do verão campanha para a eleição geral, que acontecerá em novembro), então concluímos que 2015 é mesmo o último ano em que Barack Obama pode considerar-se como dono e senhor das atenções na política presidencial.

Obama inicia o seu sétimo ano de presidência com riscos e oportunidades.
 
O principal risco é, por definição, os problemas que o campo republicano, agora reforçado com o poder nas duas câmaras do Congresso, lhe deverá infligir.
 
O «roteiro» que os republicanos já anunciaram para destruir o acordo histórico Obama/Castro, de desanuviamento e aproximação a Cuba, não deixa grande margem para dúvidas quanto a isso.
 
O controlo do Senado dá aos republicanos uma muito maior capacidade de influenciar a política externa, com poderes decisivos na área do financiamento e da aprovação de nomeações políticas.
 
Mas o Presidente, nos últimos meses, já sinalizou como pretende contornar esse problema: as ações executivas unilaterais sobre Imigração e aplicação do acordo com Cuba (hoje mesmo, dia 16 de janeiro, entraram em vigor medidas que permitem viagens de americanos a Cuba e apontam para o alívio do embargo).
 
E há outros riscos, claro: a coligação internacional que Obama se dispôs a liderar, desde setembro, para travar e destruir o Estado Islâmico não tem ainda os efeitos desejados e, em áreas da Síria, há mesmo indicações que apontam para que o «Daesh» está a ganhar terreno.

Noutro plano de conflito, o recente ataque informático do ISIS ao «twitter» e «youtube» do Centcom (US Central Command, principal estrutura do exército americano), anunciando a instauração de um «cibercalifado», durou meia-hora e foi mais simbólico que outra coisa (os americanos apressaram-se a fazer um comunicado garantindo o sistema central de informação não foi atingido e que os terroristas islâmicos não tiveram acesso a qualquer documento que pusesse em causa a segurança nacional), mas ficou o aviso.
 
Guerra longa, perigosa, mas necessária. E o facto dos EUA a liderarem claramente deu mostras de que a tal visão de «retraimento» que Obama parecia ter para a posição americana no Mundo tem balizas e deve ser tomada em perspetiva.
 
O mesmo sucede com a ameaça russa. Obama prometeu travar o avanço de Putin sobre a Ucrânia e nas zonas de jurisdição da NATO através de sanções – e elas já se sentem de forma clara no estado débil da economia de Moscovo.
 
Ao mesmo tempo, os EUA aceleram o crescimento económico: entre julho e setembro de 2014, 5%, o maior dos últimos 11 anos; para 2015 está previsto crescimento anual de 3%, o maior da última década.

Dezembro de 2014 permitiu a criação de mais 252 mil postos de trabalho, confirmando um ano com um total de três milhões de novos empregos na América.
 
Depois de anos de narrativa de «declínio» económico, aí estão, outra vez, os EUA a liderarem a recuperação económica internacional, no preciso momento em que China, Brasil e Rússia (esses mesmo, os BRIC, tão saudados até há poucos anos) dão preocupantes sinais de recuo no crescimento (no caso brasileiro, podemos até falar de estagnação). 

Independência energética e alterações climáticas

Noutras frentes, dois pontos importantes na agenda política da reeleição de Obama terão em 2015 um ano decisivo para a sua consumação. No caso da independência energética, multiplicam-se os sinais de que os EUA são, cada vez, menos dependentes do petróleo estrangeiro, explorando o gás de xisto e apostando nas renováveis.

Mais complexa é a questão das alterações climáticas, só enderaçável num quadro de acordo ambiental alargado com outros países. Os últimos meses de 2014 mostraram avanços, com o acordo com a China, mas o Presidente Obama está agora a ter nova frente de batalha neste tema, com um ambioso plano da Casa Branca no sentido de cortar entre 40 a 45 por cento da emissão de gás metano na próxima década.

O acordo com a Europa

Certamente ainda não para assinar em 2015, mas com a negociação a poder avançar nos próximos 12 meses, está o TTip, a parceria transtlântica de comércio e investimento.

Anunciada como ideia forte de Barack Obama no discurso do Estado da União em fevereiro de 2013, tem tido um longo e complexo processo de negociação entre EUA e Europa, no sentido de se chegar, até ao final do segundo mandato do 44.º Presidente da América, a um grande acordo que estabeleça o maior espaço de comércio livre do mundo.

Não é um caminho fácil, tendo em conta diferenças grandes de visões, hábitos e procedimentos de segurança, trabalho e garantias, entre EUA e estados europeus.

Mas não deixaria de ser curioso que, depois de anos a ouvirmos que Obama estava a ser o Presidente a fazer «shift» para a Ásia-Pacífico, perante o objetivo de conter a ascensão da China, Barack terminasse o seu segundo mandato assinando um grande acordo com a Europa.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Histórias da Casa Branca: heróis e fantasmas criados pelo terror

TEXTO PUBLICADO NO SITE TVI24.IOL.PT, A 14 DE JANEIRO DE 2015:
 


«Não estou a sugerir que devam gostar o que Larry Flint faz. Eu não gosto do que Larry Flint faz, mas o que eu gosto mesmo é de viver num país que permita que eu e vocês possamos tomar as decisões que entendermos»
Alan Isaacman, advogado de Larry Flint representado por Edward Norton no filme «O Povo Contra Larry Flint», dirigindo-se aos juízes do Supremo Tribunal dos EUA (1996)   

 
Uma semana depois do massacre que vitimou 12 jornalistas do «Charlie Hebdo» (e provocou um total de 20 mortos, no somatório de acontecimentos gerados a partir daí, nas 53 horas que se seguiram), o sentimento de insegurança aumentou em solo europeu e ficámos todos a perceber, de forma ainda mais clara, que o terrorismo pode mesmo tocar à porta, a qualquer momento, em qualquer lugar.
 
Muito menos amplo no número de vítimas do que foi o 11 de Setembro de 2001 na América, o 7 de janeiro de 2015 foi, no entanto, o «11 de Setembro» europeu.
 
Apesar da maior dimensão de 11 de março de 2004 em Madrid, e da maior complexidade do que foi preparado a 7 de julho de 2005 em Londres, a verdade é que os atentados de Paris tiveram um poder simbólico muito maior.
 
Por atingir o coração da identidade europeia e ocidental (a liberdade de expressão e a imprensa livre). Por matar, de forma objetiva e direcionada, setores específicos da sociedade: os jornalistas; os polícias; os judeus.
 
Ainda que, em número, não tenha sido o pior atentado dos últimos anos em solo europeu, no seu significado e no poder atemorizador exalado pelas imagens exibidas, foi, sem dúvida, o acontecimento mais relevante desde o 11 de Setembro de 2001, em matéria de terrorismo internacional.

Entre o terror das imagens de violência fria e gratuita, e o medo do que ainda pode estar para vir, há heróis improváveis que sobrevêm: Ahmed, ironicamente um policia muçulmano morto a sangue frio por defender a lei francesa e o estado de Direito, por terroristas que juravam defender o mesmo Deus; Lansana, muçulmano que escondeu 15 judeus enquanto Coulibaly sitiava o supermercado em Paris.

O «choque» não é, como se vê, religioso ou de «civilizações».
 
A eterna questão da perspetiva
 
Comecei esta crónica com uma citação do filme «O Povo Contra Larry Flint», que já tem quase duas décadas, por considerar que no argumento persuasivo do advogado do provocador proprietário da revista erótica «Hustler» está o essencial da discussão que se gerou nos dias seguintes ao massacre de Paris.
 
Pessoalmente, não sou grande fã das caricaturas do «Charlie Hebdo». São demasiado gráficas, demasiado agressivas, repetem-se na agressão. Prefiro um humor mais subtil e que atinja o ponto de forma menos óbvia.
 
Mas isso são gostos. E o ponto é mesmo esse. Nas sociedades em que vivemos, ninguém deverá ter a resposta certa para a tal questão do «gosto».
 
Quem se sentir agredido nos seus direitos por aquilo que foi publicado poderá, então, recorrer aos tribunais. Há direitos e procedimentos previstos. É tudo.
 
Acharmos que, depois do que aconteceu, se deve passar a ter mais «cuidado» com o que se escreve, desenha e publica é, sem nos apercebermos totalmente disso, entrarmos no jogo do medo e da chantagem. E as sociedades ocidentais não podem correr esse risco.
 
Houve muitos aspetos positivos no que aconteceu a seguir ao massacre de Paris: uma pulsão coletiva de «defender a liberdade de expressão» (terá sido isso o movimento #jesuischarlie); a preocupação, muito ampla em diversos setores das sociedades europeias, de separar os «radicais islâmicos» da imensa maioria de muçulmanos moderados, que querem participar livremente nas sociedades em que escolheram para viver.

Os cinco milhões de exemplares impressos para a edição 1178 do «Charlie Hebdo», saída esta quarta feira, ficará, certamente, na história da Imprensa.
 
O que a marcha de Paris nos disse
 
A diversidade de líderes internacionais que se juntaram na marcha de Paris de domingo passado deu conta da importância do momento.
 
Hollande fez bem em promovê-la e terá decidido bem em isolar Marine Le Pen (que prontamente tentou cavalgar a onda de medo, agitando a bandeira do regresso à pena de morte e propondo o fecho de fronteiras, ideia que não se compreende como possa responder ao que se passou, na medida em que os autores dos atentados tinham a nacionalidade francesa…)
 
Juntar quase quatro milhões de pessoas nas ruas de França é algo que se coloca no lote das maiores manifestações populares da história moderna.
 
Mas sabemos que, nestas alturas, há imagens que podem enganar (e aquela foto dos líderes políticos separados por vários metros do resto dos manifestantes, por razões de segurança, é um belo exemplo disso).
 
Ver Erdogan, o presidente turco, a jurar que também ele «é Charlie», ou ver representantes da Arábia Saudita ou do Catar (países que tiveram influência no financiamento do Estado Islâmico, numa primeira fase pelo menos), causa, no mínimo, perplexidade.
 
O mistério da ausência da Casa Branca
 
O que terá levado a Administração Obama a «faltar» ao acontecimento de Paris?
 
É certo que os Estados Unidos estavam oficialmente representados através da embaixadora americana em Paris, Jane Hartley.
 
Mas isso é pouco perante o desfilar de líderes de topo que a manifestação na capital francesa, ocorrida no passado domingo, proporcionou.
 
Terão sido razões de segurança que levaram à decisão de não colocar nesse momento Barack Obama? Não podendo o Presidente estar em Paris, não deveria ter enviado Joe Biden? Não é para isso que servem os vice-presidentes dos EUA? Ou, pelo menos, o secretário de Estado John Kerry, que até teve reação em francês logo a seguir aos ataques, em ato que, na altura, caiu bem no Eliseu?
 
As dúvidas permanecem sobre o que se passou, realmente, no processo de decisão da Casa Branca em relação à manifestação de Paris.
 
Perante a chuva de críticas, Josh Earnest, porta-voz da Administração Obama, admitiu em conferência de Imprensa que «devia ter sido enviado alguém de topo para essa manifestação» e que «algo falhou». Mas isso pode já ter sido uma «gestão de danos», posterior à verdadeira razão.
 
A verdade é que os EUA, como país liderante da coligação internacional que assumiu a batalha contra o Estado Islâmico, tem interesse direto na reação ao que aconteceu em Paris.
 
Os irmãos Kouachi, autores do massacre ao Charlie Hebdo, teriam ligações à Al Qaeda do Iémen e o franco-maliano Coulibaly deixou vídeo póstumo em que se diz ligado ao Estado Islâmico.
 
Pela mesma altura, o «Daesh» (nome árabe do Estado Islâmico) conseguiu, durante meia hora, violar o sistema informático do US Central Command: não na sua raíz, mas através do twitter e do YouTube, proclamando um suposto «cibercalifado». Foi mais uma ação simbólica que outra coisa (o Centcom veio logo garantir que não houve acesso a domcumentos que pudessem comprometer a segurança dos EUA), mas foi mais uma prova de que uma boa parte do «jiadismo sunita» se faz também no ciberespaço.

O tema, e a ameaça, mercerá, de resto, uma referência significativa no próximo discurso sobre o Estado da União, que o Presidente Obama vai proferir a 20 de janeiro.

A «luta» (desta vez contra o terrorismo) continuará: nas ruas, nos corredores de poder, na vigilância e no espaço virtual. O problema é que ninguém sabe até quando.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Histórias da Casa Branca: da luz e das trevas

TEXTO PUBLICADO NO SITE TVI24.IOL.PT, A 7 DE JANEIRO DE 2015:

«Se tivesse que decidir se devemos ter um governo sem jornais ou jornais sem governo, não hesitaria um momento em preferir o segundo» 
Thomas Jefferson, Presidente dos EUA entre 1801 e 1809 
  
«A França tem maior população muçulmana na Europa. São cerca de cinco milhões. Isso é uma consequência do colonialismo francês, a Argélia, Tunísia, Marrocos, países assim. E portanto isso significa que esses islâmicos radicais estão mais envolvidos na sociedade. São «locals». Conhecem o terreno. É uma preocupação. (…) Muitos muçulmanos, mesmo muçulmanos moderados, têm dificuldades com esta questão de lidar com o conceito de blasfémia. É encarado como algo terrível. Vejo muitos muçulmanos moderados a demorar a aparecer. Onde estão, por exemplo, os líderes moderados eleitos dos países muçulmanos?»  
Fareed Zakaria, analista de política internacional na CNN 
  

O ataque de quarta de manhã às instalações do «Charlie Hebdo», que provocou 12 mortos e 10 feridos, foi o maior atentato terrorista em solo francês do último meio século e a principal ação de terrorismo integrado no fundamentalismo islâmico na Europa, desde o 7 de julho de 2005, em Londres.  

Infelizmente, não foi total surpresa para as autoridades: desde as últimas semanas de 2014, sobretudo entre o natal e o ano novo, os níveis de alerta terrorista em França e no Reino Unido estavam já muito elevados. 

E o que tinha ocorrido, nos últimos meses em cidades francesas (três deles num espaço de três dias, pouco antes do natal, em Nantes e Dijon), quase prenunciava que algo mais significativo estava para acontecer.  

Por outro lado, o aumento das ações da coligação internacional liderada pelos EUA, com forte participação britânica e francesa, na campanha de contra-terrorismo para travar e eliminar o Estado Islâmico na Síria e no Iraque, levou a uma escalada da ameaça terrorista na Europa, desde setembro.  

Os sinais estavam lá, mas, na verdade, nunca estamos preparados para assistir ao que assistimos, de forma repetida nas televisões, net, rádio e jornais, nas últimas 28, desde as 11 da manhã de quarta.  

Dois homens altamente treinados, com apetrechamento hi tech e frieza assustadora na execução, a entrar numa rua calma e diferenciada de Paris, em manhã aparentementem tranquila, furando regras de segurança de um edifício que até tinha especial proteção policial, e provocando uma chacina que mudará, certamente, os dados deste jogo em que, desde 11 de Setembro de 2001, vivemos: o da travagem da ameaça do terrorismo. 

A acrescentar a tudo isto, o ataque de ontem tem dados novos: o alvo, desta vez, foi muito preciso (um jornal que incomodava); e esse alvo não foi a cúpula do poder político (ataques à Casa Branca e ao Pentágono) e financeiro (derrube das Torres Gémeas), como naquele fatídico dia 11 do mês nove de 2001, em Washington e Nova Iorque. 

No turbilhão informativo e mediático em que vivemos, o medo do terrorismo é cíclico: atinge picos depois de um acontecimento como o de ontem mas, se as autoridades fizerem bem o seu trabalho, acaba por se desvanecer entrou outras preocupações que nos cobrem o dia a dia. 

Mas desta vez pode ser diferente: os terroristas que chacinaram o «Charlie Hebdo» têm nacionalidade francesa, nasceram em Paris (confirmando essa nova tendência, que Londres 2005 parece ter iniciado, de que a ameaça maior parte de dentro).

Somos todos Charlie: a descoberta que a Europa pode ter feito

Depois, o ataque de ontem teve a novidade de ser direcionado à liberdade de expressão. De pensamento.

Ou melhor, para ser preciso: não foi «novidade» total, porque o mesmo Charlie Hebdo já tinha sido vítima de ataques violentos (bomba e incêndio), pelos mesmos motivos. Mas as consequências de ontem passaram todas as linhas vermelhas.

E ativaram em «nós», sociedade ocidental, sobretudo europeia, algo que estava adormecido, talvez por parecer, erradamente, algo de adquirido e inamovível: o tal direito ao livre pensamento e à livre expressão dele. Sem consequências e sem estar diretamente ligado ao «gosto» ou à «opinião».

É um pouco como a luz elétrica: só sentimos falta quando ela falha. Ontem, percebemos que a liberdade de expressão pode estar sob ameaça séria do radicalismo islâmico, que não sabe pôr as coisas em perspetiva e toma as coisas à letra. 

A reação da «rua europeia», das redes sociais e das redações dos media internacionais (#jesuischarlie) foi simplesmente espantosa. E provou que a Europa, nos momentos decisivos, ainda tem força para se unir no essencial. 

Enfrentar o tema 

Depois, o ataque de ontem teve a novidade de ser direcionado à liberdade de expressão. De pensamento. 

O tema é delicadíssimo: países como França, Alemanha ou Reino Unido têm muitos milhões de muculmanos e uma percentagem imensamente maioritária deles é moderado e quer, simplesmente, viver as suas vidas em liberdade.

Estarão eles, a partir de agora, em perigo nos seus direitos e na sua segurança? São eles as principais vítimas? Pode ser. E isso exige um enquadramento dos líderes muçulmanos moderados, que perante acontecimentos como o de ontem têm que ser mais enérgicos na condenação e pedagógicos na explicação das diferenças. 

A forma como, já ontem, o sheikh David Munir, líder da comunidade muçulmana de Lisboa, comentou os ataque de Paris pode até servir de exemplo para o que outros deviam ter feito e ainda não fizeram.

Do outro lado do Atlântico, Keith Ellison, democrata do Minnesota, um dos dois congressistas americanos de religião muçulmana, só precisou de uns minutos depois do atentado em Paris para escrever no twitter: «Os verdadeiros muçulmanos não fazem isto».

A Liberdade vai vencer o medo? Para já, parece que sim.

Mas o desafio é tremendo. Porque já começou e, na verdade, não tem fim.