sexta-feira, 25 de março de 2016

Histórias da Casa Branca: a jogada cubana de Barack Obama



«O general MacArthur só considerou que ganhou ao Japão quando obrigou o imperador Hirohito a ser fotografado ao seu lado. Os simbolismos só valem a pena quando são úteis»

Ferreira Fernandes, crónica no Diário de Notícias


«Sinto-me muito bem com a minha presidência. Olhando para trás, acho que não há qualquer razão para me sentir envergonhado. Sinto que agi sempre com honestidade e integridade e nunca feri os meus princípios fundamentais. E isso acho que é relevante. Não digo que consegui 100% do que queria, mas acho que conseguimos fazer muita coisa»
                          
BARACK OBAMA, Presidente dos EUA, em declarações aos media na Argentina




A viagem de Obama a Cuba foi histórica, mas teve um revés inesperado. Os brutais atentados em Bruxelas, ocorridos exatamente a meio do programa de três dias do Presidente dos EUA em Havana, retiraram boa parte da atenção mediática que se aguardava



Obama sabe que já será tarde para conseguir levantar o embargo durante a sua presidência. Mas conseguiu, nesta «jogada cubana», o melhor caso de uma «liderança pelo exemplo», apostando na força simbólica que teve aterrar no Air Force One em pleno Aeroporto José Martí



O retraimento americano em zonas como o Médio Oriente e até a Europa, sentido de forma gradual nos anos Obama, não foi apenas o «shift» anunciado nos primeiros anos desta Administração para a Ásia-Pacífico. A aproximação a Cuba e a as relações aprofundadas com países como a Argentina dão conta da prioridade de Obama em reposicionar a influência dos EUA juntos dos países que lhe são geograficamente mais próximos



Enquanto a corrida à sua sucessão nos continua a surpreender (Donald Trump reforça liderança no lado republicano, mas cresce a ideia de uma «contested convention» em Cleveland, sobretudo se o multimilionário não conseguir ganhar a California), Barack Obama dá mostras de querer aproveitar até aos últimos cartuchos o poder de influência do seu segundo mandato presidencial.

A viagem do 44.º Presidente dos EUA a Cuba foi histórica: há quase 90 anos que um «líder do mundo livre» não visitava Havana.

A enorme carga simbólica do gesto cubano de Obama foi evidente e indesmentível.

Barack, Michelle, Malia e Sasha a passearem tranquilamente pelas ruas de Havana (mesmo à chuva...), com o cortejo de seguranças e agentes dos Serviços Secretos a garantirem a «bolha» com que Obama anda em permanência há mais de oito anos, ficará certamente como uma das imagens icónicas dos dois mandatos presidenciais do primeiro presidente negro da história da América.




Tendo em conta a visão política e diplomática do atual Presidente dos EUA, a operação tem que ser considerada um sucesso.

Numa altura em que o ambiente político nos EUA está a resvalar para níveis muito pouco recomendáveis, Obama voltou a provar que a tal «maioria silenciosa» que está a empurrar Trump para a nomeação republicana ainda não chega para retirar a autoridade natural de quem foi eleito duas vezes, com larga margem, para a Casa Branca.

Obama, que não se tem coibido de criticar em público o tom e o modo como está a decorrer o processo de primárias republicanas, voltou a provar que nem todo o discurso político americano caiu numa espécie de loucura coletiva.

Consistente com o que anunciou no final de 2014, o Presidente dos EUA visitou Cuba, cortando com o que considerou ser um «resquício antiquado da Guerra Fria».


Barack e Raul, quem diria?

Apesar das diferenças de visões em questões como os Direitos Humanos, e com pesos diferentes para medir a democracia, Obama, no seu estilo pragmático, quis mostrar, ao lado de Raul Castro, que as divergências ideológicas, programáticas e até etárias entre os dois não os impediram de chegar a uma conclusão comum: norte-americanos e cubanos têm muito a ganhar com esta reaproximação e tinham muito a perder se continuassem de costas voltadas.





E o resto?

Bom, o resto, só o processo político e social em Cuba poderá determinar.

Na linha do que já tinha defendido nas saídas americanas que promoveu no Iraque e no Afeganistão, Barack Obama lembrou que «quem decide os destinos de Cuba são os cubanos».

Barack voltou, assim, a ser um presidente que não se vê como líder ingerente de soberanias alheias. «Cuba é um país soberano», insistiu.



Houve quem visse neste tipo de atitude uma posição tíbia, de fraqueza, em relação ao problema dos direitos políticos e democráticos em Cuba. Sobretudo quando Raul Castro, na conferência de Imprensa conjunta no primeiro dia, aproveitou o momento para atirar, demagógico, a um jornalista da CNN: «Presos políticos? Quem? Onde? Dê-me uma lista de nomes e nós soltamo-los ainda esta noite!»

Obama e Raul Castro são dois líderes completamente diferentes: na visão do mundo, no estilo, na idade e, claro, na forma como chegaram ao poder.

Mas uma vez mais Barack foi capaz de desenvolver uma espécie de «liderança pelo bom senso» e, através de uma relação pessoal que foi criando com o irmão e sucesso de Fidel, atingiu um dos pontos mais altos da sua presidência.




Mesmo sem a concretização do mais relevante em termos económicos (o fim do embargo), a força do gesto parece ser irreversível. «O embargo terminará, não sei é quando e com quem», lançou Obama.

O próprio Raul Castro reconheceu que «as medidas tomadas pelo governo de Obama sobre o tema são positivas, embora insuficientes, por culpa da barragem do Congresso».

A questão cubana marca, de forma clara, o clima de divisão insanável que se vive na política americana.

Os principais líderes republicanos de ascendência cubana (Ted Cruz e Marco Rubio) continuam frontalmente contra esta aproximação a Cuba, porque veem nela uma «cedência inadmissível do líder do mundo livre a um regime ditatorial e ultrapassado».

O ponto é que Obama não está assim muito preocupado com as análises de quem o acusa de ter dado «um último fôlego ao regime castrista».

Para o Presidente dos EUA, o mais relevante é que foi aberto um processo que, no fim do dia, redundará em novas oportunidades económicas e sociais para cubanos e norte-americanas.

O concerto dos Rolling Stones, realizados dias depois da visita de Obama, só foi possível porque antes o Presidente dos EUA abriu o caminho para a capital cubana.





Não por acaso, a popularidade de Barack Obama está, em Cuba, nos 80% -- muito, mas mesmo muito, acima do que sempre teve nos EUA.

O facto de, logo a seguir a ter deixado Havana, ter seguido para a Argentina reforçou o sinal de reposicionamento dos EUA como principal pivot do «mundo americano».





O tango que dançou no Salon de Los Escudos do Centro Cultural Kirchner de Buenos Aires, em jantar oficial oferecido por Marcelo Macri, ilustra bem o estilo pessoal do Presidente dos EUA e simboliza o degelo das relações EUA-Argentina, depois do afastamento na era Kirchner.

Mesmo numa altura em que parece quase impossível fazer valer uma posição sensata na política americana, Barack Obama não desistiu de uma liderança racional. A escolha de Merrick Garland, juiz com registo equilibrado entre opções liberais e conservadores, tornaria difícil uma barragem imediata da maioria republicana no Senado. 

Mesmo que ela aconteça, ficará claro quem é, neste momento, o único «adulto na sala» em Washington. Não será de admirar que haja já quem se inquiete por só o termos na Casa Branca até janeiro de 2017.

Talvez a próxima surpresa, depois da jogada cubana revelada com estrondo no final de 2014, e agora concretizada com a histórica presença em Havana, possa ser uma visita a Hiroshima -- essa mesma, a cidade japonesa destruída por bomba atómica.

Desde 1945, nunca um Presidente do EUA ousou fazê-lo -- mas Obama está a ponderar mais esse passo histórico, aproveitando a cimeira do G7 que se realizará em maio no Japão. 

Fala-se em «reta final de Obama» há já uns tempos, mas a verdade é que os «últimos cartuchos» do primeiro presidente negro da história da América estão a ser, no mínimo, produtivos. 

sábado, 19 de março de 2016

Histórias da Casa Branca: Hillary vs Trump ou ainda vale a pena imaginar um «golpe» republicano?


Donald Trump será o mais votado e o que mais delegados vai arrecadar na corrida republicana. Mas a vitória de Kasich no Ohio pode ter levantado a dúvida: será que Donald ainda atingirá os 1.237 exigidos para chegar à convenção já nomeado? O apoio de Romney a Ted Cruz foi mais um momento surreal da corrida republicana e indica uma réstia de resistência do «establishment» à «tragédia Trump». Mas talvez seja tarde demais



  
Marco Rubio foi digno na hora da derrota humilhante «em casa»: saiu de cena depois de perder a Florida para Trump e avisou os seus apoiantes: «somos uma República, respeitamos em absoluto a vontade popular. Seja ela qual for». Por ele, Trump será mesmo investido. Mas há quem não pense assim nas cúpulas republicanas. Ted Cruz e John Kasich podem ter apoios inesperados para manterem gás suficiente até à convenção de Cleveland


  
«Donald Trump is playing nice» -- depois de meses e meses com um discurso super agressivo, a explorar medos e ignorâncias, a perspetiva da nomeação está a moderar uma parte da retórica do multimilionário. Trump sabe que o grande risco, a partir de agora, é que o clima de tensão e quase violência em torno da sua candidatura gere uma perturbação que assuste o eleitorado que vai decidir. Unir o Partido Republicano parece missão impossível: a maior parte dos líderes do partido que deverá nomear Trump simplesmente o detesta



Hillary Clinton, no prática, já obteve a nomeação: já agarrou perto de 75% dos delegados que precisa para selar a vitória na Convenção de Filadélfia, entre delegados obtidos por votação e superdelegados. Mas Sanders quer capitalizar a jornada notável que tem percorrido, assumindo-se como voz incontornável do liberalismo americano e da visão «anti-sistema», versão democrata



A «mini Super Tuesday» do passado dia 15 confirmou duas coisas: Hillary Clinton será mesmo a nomeada do Partido Democrata e Donald Trump vai ser o candidato mais votado e com mais delegados do Partido Republicano.

O triunfo claro do multimilionário na Florida deitou ao tapete Marco Rubio – aquele que talvez tivesse sido o escolhido dos republicanos se este ciclo de primárias fosse «relativamente normal».

Só não escrevo, em relação a Trump, uma terceira conclusão que aponte para a sua nomeação, porque restam sinais, nas cúpulas republicanas, de alguma resistência a uma realidade que parece cada vez mais inevitável.

Marco Rubio foi digno na hora da humilhação: depois de perder por larga margem na Florida, estado que representa no Senado dos EUA, avisou os seus apoiantes de que, tendo em conta a forma como se escolhem presidentes na América, não resta outro caminho que não seja respeitar humildemente a vontade de quem vota e seguir a nomeação de Trump, caso ela se concretize.

Mitt Romney, nomeado presidencial republicano em 2012, não pensa assim: depois de assumir discurso arrasador contra Trump, anunciou que fará campanha por Ted Cruz nos próximos estados, para evitar que Donald chegue a Cleveland com os 1.237 delegados exigidos para agarrar a investidura.



Tarde demais para um golpe de teatro

Mas parece tarde demais para imaginar uma «brokered convention»: se Trump não chegar ao tal número mágico até junho, andará lá perto – e certamente muito acima de Cruz e Kasich.

Como advogar um candidato de última hora, que não tenha passado pelo crivo dos estados? Como defender que John Kasich, que até hoje só ganhou no estado que governa, tenha condições políticas para ser investido na convenção, ele que representa o centro republicano que, precisamente, está a ser triturado pelos eleitores do partido em quase todos os estados?




Para refrear ânimos, um porta-voz do Comité Nacional do Partido Republicano foi claro, em declaração recente: «Se Donald Trump for o nomeado da convenção, vamos respeitar  em absoluto essa escolha».

Ideias que apontam para uma candidatura «do establishment» à margem da nomeação de Trump parecem, pois, desabafos em voz alta que, a serem concretizados, ofereceriam de  bandeja a eleição de Hillary.


Rubio, um futuro brilhante... atrás dele?

Depois da derrota de Romney sobre Obama nas presidenciais de novembro de 2012, parecia haver uma corrente suficientemente forte no Partido Republicano que apontava para a necessidade de «abrir o partido» às minorias emergentes na América.

Dentro destes segmentos, os latinos adquiriam especial relevância. O partido passou a olhar, desde aí, com especial atenção para um jovem senador da Florida, conotado com o Tea Party mas não em demasia para poder assumir-se como candidato presidencial viável no plano nacional.

Com um discurso menos fundamentalista que Ted Cruz (a outra estrela hispânica dos republicanos), Marco Rubio parecia ter tudo para ser «the special guy» que iria recolocar os republicanos na rota da Casa Branca: menos rotulado com o «passado dinástico» dos Bush do que Jeb, mais credível do ponto de vista político e social para o eleitorado americano do que Ted Cruz ou Mike Huckabee.

Vários «think tank» conservadores e a generalidade dos comentadores e «pundits» foram colocando, desde 2012, Marco Rubio no pedestal dos pretendentes à nomeação presidencial republicana.

Só que a influência dos candidatos menos conotados com «establishment» não foi devidamente valorizada.

Ted Cruz, afinal, não só não é tão minoritário no seu discurso ultraconservador e fundamentalista evangélico como até se revelou eleitoralmente mais competitivo do que Marco Rubio.

A força do Tea Party, avassaladora nos primeiros anos de Administração Obama -- como reação da Direita americana aos intentos do Presidente de aumentar «o peso do Governo» e a «influência dos programas federais» -- gerou um desvio ideológico e até demográfico muito significativo nas características atuais do Partido Republicano.


A derrota do centro

O centro político quase desapareceu (que o digam nomes como Jeb Bush, Mitch Daniels, Jon Huntsman, George Pataki, Chris Christie ou até John McCain e Mitt Romney, os últimos dois nomeados presidenciais republicanos).

O desvio à direita foi brutal. De tal modo que até o fenómeno Tea Party está hoje, de algum modo, ultrapassado.

Candidatos como Mike Huckabee, Scott Walker ou Bobby Jindal foram triturados pela novidade que quase ninguém previu: Donald Trump.

O «frontrunner» republicano, multimilionário de sucesso nos negócios, é uma espécie de produto «pós Tea Party».

Menos ligado a grupos religiosos, tem sabido assumir os receios e exigências de muitos desses segmentos (o triunfo largo de Donald na Carolina do Sul assim o confirmou).

Ao contrário do que acontecia com Huckabee ou do que sucede com Cruz, Trump não coloca Deus como «mantra» essencial da sua retórica.

Fala da religião como um dado crucial para se perceber aquele país. Assume a liturgia do endeusamento da Constituição (base de toda a ação política do Tea Party nestes anos, numa interpretação literal que se desajusta a 2016).

Mas aposta mais forte em «feridas» como a ideia de que «a América ficou mais fraca com os anos Obama», garantindo que, com ele na Casa Branca, «os EUA serão grandes de novo». «Vou derrotar a China e vou exterminar o ISIS», promete, impante, nos seus comícios.

2016 está, por isso, a ser o ano do populismo, sobretudo do lado republicano.


Compreender Bernie

Mas não só: a jornada notável de Bernie Sanders, visto até há poucos anos como um «outsider» da grande política americana explica-se, em boa parte, por uma espécie de «populismo de esquerda», sem as diatribes irresponsáveis de Trump em relação aos imigrantes e às minorias, mas com uma retórica igualmente perigosa em relação ao «sistema financeiro» e «contra Wall Street».

Hillary Clinton será, certamente, a nomeada democrata.

A superfavorita já conseguiu perto de três quartos dos delegados que necessita para confirmar a nomeação, depois da boa resposta que deu a 15 de março: vitórias claras na Florida, no Ohio, no Illinois e na Carolina do Norte (e ainda uma vitória à tangente no Missouri).

Mas os 851 delegados já garantidos pelo septuagenário senador do Vermont (mais do que Donald Trump conseguiu do lado republicano, por exemplo) não podem ser menosprezados – sobretudo porque foram quase todos obtidos por votação (enquanto Hillary tem perto de 500 superdelegados a engrossar os 1606 que já obteve).

E parece certo que Sanders vai levar esta caminhada até à convenção: «O plano é convencer os superdelegados a mudar de ideias até lá», lança, provocador e determinado, o senador do Vermont.




A chave para que Hillary não se deixe surpreender por Trump na eleição geral (para já, as sondagens dão vantagens relativamente confortáveis à democrata sobre o republicanos, de 10 a 13 pontos de diferença) passa muito por Clinton conseguir, nos próximos meses, fixar do lado democrata o «voto de descontentamento» que Sanders está a conseguir verter nas urnas, em diferentes estados.

Se a eleição geral se transformar numa estranha (e perigosamente imprevisível) luta entre «sistema» e «anti sistema», então aí Hillary pode ficar numa posição extremamente sensível de corporizar «o business as usual dos políticos que estão lá há vários anos e deixam tudo na mesma», enquanto Donald se deliciaria a vestir a pele do «herói anti sistema que vai mudar isto tudo».


Sistema vs anti sistema?

Podem parece rótulos simplistas – mas o perigo existe, tendo em conta o clima maniqueísta que está instalado neste momento na política americana.

As «odds» parecem favoráveis a Hillary para novembro: minorias esmagadoramente do lado dela; boa parte dos republicanos assustados e quase envergonhados com o provável nomeado do seu próprio partido.

Mas convém analisar com especial atenção, nos próximos meses, os pontos de contato que, eventualmente, existirão, entre o perfil do eleitorado Sanders e do eleitorado Trump (na idade, no perfil social, na história de vida). 

Talvez tenhamos algumas surpresas desagradáveis.



sábado, 12 de março de 2016

Histórias da Casa Branca: o lado negro da mais louca corrida do mundo



A América é ótima: elegeu Obama duas vezes. A América é péssima: está a ir na perigosa cantiga de Trump. É uma enorme, mas também definidora, contradição. O mesmo sistema que permitiu a fantástica eleição de Barack em 2008 pode, agora, gerar uma assustadora nomeação presidencial de Donald – e tem como alternativa mais próxima um quase tão assustador Ted Cruz. É o lado negro de uma América que nos surpreende: muitas vezes para melhor mas também para o pior



Donald Trump está, na prática, a duas vitórias da nomeação: se ganhar os estados «winner takes all» Florida e Ohio (o mais votado arrecada todos os delegados em jogo), basta manter até ao fim da corrida a percentagem de votos que tem tido para poder chegar à Convenção de Cleveland com o número mágico (1.237 delegados) que lhe permite não depender de outras contas




Uma boa fatia do Partido Republicano parece disposta a não aceitar Donald Trump. A forma como Marco Rubio e John Kasich continuam a falar do inesperado «frontrunner» anuncia um clima de tensão e discórdia no GOP, nos próximos meses. Mas como acreditar num «golpe de teatro» que trave a investidura de Trump em Cleveland se até agora só se tem assistido ao falhanço de todas as possíveis alternativas ao «desastre Trump»?



Hillary Clinton tem enorme avanço sobre Bernie Sanders na contagem dos delegados, graças ao apoio maciço dos superdelegados. Mas a diferença nas votações por estado não é assim tão grande. O triunfo de Bernie no Michigan apanhou toda a gente de surpresa e voltou a pôr a nu as dificuldades que Hillary pode vir a ter no eleitorado jovem e ‘white blue collar’




Ainda não dá para não abrir a boca de espanto.

O mesmo sistema que permitiu a extraordinária caminhada de um candidato com as características de Barack Obama em 2008 chegar à Casa Branca e ser reeleito em 2012 pode, agora, proporcionar uma nomeação assustadora de Donald Trump.

É o lado negro da mais louca corrida do mundo.

Não vale a pena dizer agora que «os americanos são irresponsáveis e ignorantes». Isso é um simplismo que não ajuda a percebermos o essencial.

Na verdade, «os americanos» foram capazes de protagonizar a fantástica eleição do primeiro negro no mais influente cargo político a nível mundial.

E ainda é cedo para dizer que os tais «americanos» se aprestam para, desta vez, entregar a Casa Branca a mr. Trump.

Para já, o «ónus» vai para o eleitorado republicano – e, verdade seja dita, nas sondagens para a eleição geral Hillary bate sempre Trump, ainda que por diferenças não totalmente tranquilizadoras (entre os 4 e os 12 pontos, consoante os estudos).

Ainda assim, a provável investidura do truculento multimilionário nova-iorquino é um terramoto para os republicanos e pode levar a dissensões insanáveis no partido que produziu presidentes da dimensão de Lincoln, Teddy Roosevelt, Eisenhower ou Reagan.

O cenário torna-se ainda pior para uma certa noção de conservadorismo moderado americano, quando vemos que o único candidato com condições reais de ainda ultrapassar Trump na soma dos delegados não é Marco Rubio, nem sequer John Kasich: é o senador texano Ted Cruz.

É que, como bem avisou o ex-Presidente Jimmy Carter, «em muitos aspetos, Cruz é pior que Trump». «Sobre Trump, sei que se ele fosse presidente não faria quase nada dos disparates que anda a dizer na campanha. Com Cruz é diferente. Cruz acredita verdadeiramente no que diz e tem posição de extrema-direita que não se coadunam com a governação da América».

A tese não é só de Carter.

São cada vez mais os que acreditam que Trump, uma vez na Casa Branca, não faria quase nada do que está a propalar na campanha: muro para separar o México dos EUA; como? Expulsão dos muçulmanos; para onde?

Já em relação a Ted Cruz, o registo do texano ligado ao Tea Party no Senado confirma um radicalismo extremo e consistente: Ted foi um dos ideólogos do «shutdown» e tem um ódio de morte a todas as políticas defendidas pela Administração Obama.

Não por acaso, nas intervenções públicas do Presidente Obama sobre o ambiente que se tem gerado nas primárias republicanas, Barack não cinge as suas críticas e avisos aos desvarios de Donald Trump. «Os restantes candidatos defendem coisas igualmente preocupantes. Ser presidente é muito difícil», atalhou Obama.

Mais direcionado foi o Papa Francisco quando sentenciou: «Trump não pode ser cristão, porque os cristãos não constroem muros, constroem pontes».

O fim do GOP tal como o conhecíamos?

O «establishment» do GOP (Grand Old Party) está feito em cacos.

A aposta que parecia mais segura (Jeb Bush) falhou espetacularmente. Jeb foi governador credenciado na Florida, filho e irmão de ex-Presidentes.

Se esta corrida tivesse sido há uns anos, parecia ter tudo para ser o nomeado: o nome dinástico, o currículo político, a capacidade de segurar o eleitorado conservador e ir buscar independentes e moderados democratas, dispostos a dar uma oportunidade a um republicano, depois de oito anos de presidência democrata, em nome da alternância.

Para mais, Jeb fala muito bem espanhol e é casado com uma hispânica. Estava lançado o caminho para que o nomeado republicano, desta vez, disputasse seriamente o crescente eleitorado latino, que nas últimas duas eleições preferiu maciçamente Obama a McCain e Romney.

Nada disso.

2016 está mesmo a ser mais inesperada e contraditória corrida presidencial americana em várias décadas.

Jeb Bush, o candidato com mais nome, mais currículo e mais dinheiro, desistiu cedo.

Ainda antes tinha caído aquele que parecia ser um possível emergente desta corrida de 2016: Scott Walker. Bem mais novo que Bush, com créditos firmados no estado que governa, o Wisconsin, e propostas de conservadorismo fiscal com tudo para agradar à «republican base».

Walker, que chegou a liderar no Iowa, viu depressa o filme que iria começar a acontecer no seu partido: nas semanas seguintes à entrada ruidosa e destruidora de Trump, caiu a pique no Iowa e não ficou melhor nos estados que se seguiam no calendário.

Resultado: Scott desistiu meses antes do início das primárias, tentando passar mensagem profilática aos restantes contendores – travem a ameaça Trump enquanto é tempo de salvar o partido.

«Frente anti-Trump»? Onde?

Só que a mensagem de Scott Walker, reproduzida nas semanas seguintes por outros republicanos de peso (entre os quais antigos candidatos à presidência, como Mitt Romney ou John McCain, e pela generalidade dos analistas e comentadores) não surtiu efeito.

Bem pelo contrário: Chris Christie, governador da Nova Jérsia que até gozava de aura irreverente e pensamento próprio, chocou o sistema político americano (nos dois campos partidários) ao ser o primeiro ex-candidato e político de dimensão nacional a declarar apoio a Trump e a aparecer com Donald em ações de campanha, num gesto vergonhoso que lhe terá custado a perda da credibilidade que ainda lhe restava (na Nova Jérsia já há quem exija a demissão do governador).

Mais tarde, Ben Carson seguiu as pisadas de Christie (embora no caso do neurocirurgião negro, a surpresa não tenha sido tão grande, dados os pontos de contato com o posicionamento de Trump em relação às críticas ao sistema político, às regras de Washington e ao currículo de «não-político profissional»).

Bem mais desconcertante do que estes apoios foi a total falta de noção de «frente anti-Trump» em toda a dinâmica da corrida republicana até agora.

Quando Jeb Bush desistiu, gerou-se uma expetativa de um apoio geral do «establishment» republicano em torno de Marco Rubio. Alguns até pediam a John Kasich (na verdade, o mais moderado dos sobreviventes da corrida) para desistir também, de modo a concretizar essa «frente anti-Trump» em torno do senador cubano-descendente da Florida.

O problema é que nada disso aconteceu. Nem Rubio beneficiou de apoios sucessivos dos seus pares, nem sequer Kasich saiu do caminho.

E o momento atual da corrida republicana não deixa grandes dúvidas: ou Rubio consegue uma recuperação espetacular nos próximos dias e, contrariando todas as sondagens, vence na Florida, ganhando assim um novo fôlego para o que resta da corrida, ou será uma carta fora do baralho depois de 15 de março.

Kasich, já sem qualquer hipótese de sonhar com a nomeação, tem possibilidades reais de vencer as primárias do Ohio, estado que governa com popularidade muito elevada (as últimas sondagens colocam-no a apenas um ponto de Trump).

Numa jogada inteligente, Rubio está a aconselhar os seus apoiantes a votarem «útil» em Kasich no Ohio. Se esse apelo funcionar, não é de excluir que Trump não consiga vencer no influente estado do Midwest.





Mas caso Donald arrebate mesmo os dois grandes prémios da próxima terça à noite (99 delegados em jogo na Florida, 66 no Ohio, ambos em sistema ‘winner takes all’), a questão fica arrumada: Trump será mesmo o candidato com mais delegados até ao fim – e mantendo a média dos votos que tem tido até agora, é quase certo que chegará à Convenção de Cleveland com o número mágico assegurado (pelo menos 1.237 delegados arrecadados durante as primárias).

Apertem os cintos: vem aí mais turbulência

Neste momento, Donald Trump tem 460 delegados, Ted Cruz soma 370, Marco Rubio fica-se por uns frustrantes 163 e Kasich tem uns irrelevantes 63.

Trump arrebatou já 15 estados (New Hampshire, Carolina do Sul, Nevada, Alabama, Arkansas, Geórgia, Massachussets, Tennessee, Vermont, Virgínia, Luisiana, Kentucky, Hawai, Michigan, Mississipi) ; Cruz ganhou em oito (Iowa, Alaska, Oklahoma, Texas, Kansas, Maine, Idaho, Wyoming); Rubio venceu apenas no Minnesota, em Porto Rico e na capital federal (District of Columbia)..

Se a questão fosse só matemática, pareceria que tudo está ainda em aberto entre Trump e Cruz. Só que o senador texano não tem qualquer hipótese de obter os grandes prémios do próximo dia 15. E não dá mostras de se bater com Donald nos estados que não sejam da «Bible Belt» e do Sul.

Ao contrário do que muitos disseram e escreveram nos últimos meses, Donald Trump tem-se mostrado um candidato transversal: é forte em estados do Sul, com mais pendor religioso e evangélico; é forte em estados do Midwest (apanhando zonas economicamente deprimidas e excluídas da «globalização») e, surpresa das surpresas, está a mostrar-se forte também em estados cosmopolitas da Costa Leste e até nos estados com muitos hispânicos.

Donde, a tese de que Ted Cruz seria um «mal menor» para o Partido Republicano não colhe.

Em muitos aspetos, incluindo o desempenho eleitoral projetado numa eleição nacional, Donald Trump está a revelar-se menos «assustador» que Cruz. E embora mantenha boa parte dos desvarios com que se lançou para uma surpreendente liderança folgada, a verdade é que, quanto mais avança com vitórias em estados e soma de delegados, mais tenta passar uma imagem de «unificador» do Partido Republicano.

A política americana, de facto, não para de nos surpreender.

Tempos interessantes, mas perturbadores

Como diria a velha maldição chinesa, «vêm aí tempos interessantes» do lado republicano.

O tempo para travar Trump pode já ter passado na lógica tradicional de um processo de primárias, mas a verdade é que esta corrida de 2016 está a ser diferente de todas as outras.

Não será de excluir um «golpe de teatro» na Convenção de Cleveland, sobretudo se Donald não ganhar no Ohio e, com isso, perder gás na caminhada para uma soma maioritária de delegados.

A questão é mesmo esta: e se Trump aparecer na convenção de julho com mais de 1000 delegados, mas menos que os tais 1.237? Há espaço para uma rejeição do candidato mais votado pelo «povo republicano»?

Há pouco mais de uma década, Donald dizia sentir-se «mais próximo dos democratas que dos republicanos», porque «o Partido Republicano é demasiado à direita». Será que na hora da verdade Ted Cruz conseguirá convencer o resto do partido que, ele sim, pode assumir as bandeiras do conservadorismo americano?

Há correntes do conservadorismo (e «neoconservadorismo», também) americano que têm apontado, nas últimas semanas, em artigos e em intervenção em «think tanks», um cenário de rutura: o Partido Republicano, em nome dos seus valores e dos seus princípios, deve rejeitar Trump na Convenção, forçando-o a a uma candidatura independente, mesmo que Donald obtenha o número mágico de delegados.

Seria um cenário extremo, de turbulência máxima, e que colocava o nomeado republicano (alguém que ainda não foi votos?) numa posição de fragilidade e até de alguma falta de legitimidade (na América, a vontade do povo é levada mesmo muito a sério).

Não parece, pois, muito provável que isso venha a acontecer. 

Talvez mais republicanos tenham mesmo que seguir a via de Christie ou, pelo menos, que engolir o «elefante Trump», por muitas indigestões isso possa causar (veja-se o clima de tensão, quase violência, que está a criar-se nos comícios de Trump).

Mas nesta estranhíssima corrida de 2016, o melhor mesmo é não afastar qualquer cenário. Como Sherlock Holmes costumava dizer ao fiel ajudante Watson: «Exclua o impossível e o que restar, por muito improvável que lhe possa parecer, será a resposta».

Fragilidades no superfavoritismo de Hillary

No campo democrata, a questão da nomeação está resolvida: não restam dúvidas de que Hillary Clinton vai mesmo ser investida como candidata presidencial na convenção de Filadélfia.

O avanço da ex-secretária de Estado sobre o senador socialista do Vermont é já suficiente para ser seguro atribuir, de forma tão precoce, esse resultado final.

Hillary tem já garantidos 1.231 delegados (766 por votação e 465 superdelegados); Sanders fica-se pelos 576 (551 por votação e apenas 25 superdelegados).

Clinton venceu já em 13 estados (Iowa, Nevada, Carolina do Sul, Alabama, Arkansas, Geórgia, Massachussets, Tennessee, Texas, Virgínia, Samoa Americana, Luisiana e Mississipi); Bernie ganhou em nove (New Hampshire, Colorado, Minnesota, Oklahoma, Vermont, Kansas, Nebraska, Maine e Michigan).

Mas nem sempre os números dizem tudo.

Não fosse o enorme avanço que Hillary tem nos superdelegados, estaríamos neste momento a falar numa acesa disputa pela nomeação no lado democrata.

O discurso duro, frontal e corrosivo de Sanders está a passar essencialmente em dois eleitorados importantes para a «grande tenda democrata»: os jovens até aos 30 anos, especialmente os que têm alguma diferenciação académica e se sentem injustiçados pelo sistema; e ainda pelo eleitorado «white blue collar», excluído da globalização, que perdeu nos últimos anos o seu emprego em «indústrias tradicionais» e não tem habilitações para poder reconverter-se à «nova economia», talhada para quem tem credenciais no mundo digital e não em indústrias pesadas.




A vitória de Bernie no Michigan (terreno que parecia ser favorável a Hillary) apanhou todos de surpresa. E foi a prova final das vulnerabilidades que a antiga Primeira Dama e senadora por Nova Iorque tem em segmentos em que terá que vencer claramente na eleição geral.

É certo que Hillary também já obteve vitórias esmagadoras (50 pontos de vantagem na Carolina do Sul, quase 70 por cento de avanço sobre Sanders no Mississipi…), mas também é verdade que o que está a garantir a Clinton o caminho para a nomeação é a fidelidade do voto negro, dos latinos e dos «aparelho» do Partido Democrata.

Chega para obter a nomeação contra o desalinhado Sanders. De acordo com as sondagens, também chegará para bater Trump na eleição geral.

Mas Hillary terá, nos próximos meses, que conseguir descolar da imagem de uma candidata «do sistema», demasiado comprometida com o «business as usual» de Washington.

Em tempos em que o populismo rende tanto eleitoralmente, não será de excluir que Donald Trump consiga apanhar parte dos votos anti-sistema que Sanders está a obter.

Nunca foi tão difícil antecipar os resultados finais de uma eleição presidencial na América.