«Os europeus gostam de
compor a sua versão da América. Gostam de apontar o dedo e dizer: ‘isso, o
sonho, não está a correr muito bem, pois não?’ Do meu ponto de vista, o sonho
está a funcionar melhor do que vocês pensam. O que não está a correr nada bem é
a Palestina, o Congo. Nesses lugares é que o sonho não está a funcionar mesmo
nada. (…) São sobretudo europeus que dizem que a classe média americana está em
colapso. (…) Leio muito, ando pelo mundo, mas quando se compara o nível de vida
da maior parte dos americanos com o da maior parte da população mundial, vê-se
que vivemos muito bem por aqui. É muito difícil para mim entender a noção de
colapso da classe média. Percebo que é o que os políticos andam a dizer para se
fazerem eleger. Sei que há uma franja da sociedade americana que sente que não
é recompensada pelos seus esforços e isso é verdade. É que faz com que muitas
pessoas votem em Donald Trump. Sentem que têm sido esquecidas, que as promessas
do Ronald Reagan nos anos 80 não as abrangeram, e provavelmente isso é verdade.
E há uma enorme disparidade neste país, não apenas a óbvia entre ricos e
pobres, mas entre os ricos e a classe média. Isso é um problema da distribuição
de riqueza neste país. Mas não acredito que a classe média esteja a colapsar. Está,
talvez, a mudar. Talvez a passar por um enorme stress, mas não a colapsar».
RICHARD FORD, professor de Literatura na
Universidade de Columbia e escritor, entrevista ao «ípsilon»
Donald Trump
está a conseguir convencer milhões de republicanos de que «a América precisa
de conseguir voltar a ser grande».
Mas… será
que ela alguma vez deixou de o ser?
Barack
Obama, que nos últimos dias voltou a mostrar o seu poder de influência nas
chancelarias europeias no jantar do 90.º aniversário da Raínha Isabel II e em
posterior encontro com Merkel (em que elogiou a política de Angela para os refugiados e insistiu nas vantagens de um grande acordo comercial EUA-UE), parece apostado em dedicar a reta final do seu
segundo mandato a provar que Trump está completamente errado.
E Hillary
Clinton, a sua mais que certa sucessora na nomeação democrata e provável
substituta na Casa Branca a partir de janeiro, segue a mesma linha de
argumentação.
«A América continua a ser grande. Somos um farol de esperança e uma inspiração para todos os que querem seguir o caminho da Liberdade e dos Direitos Humanos. Nenhum problema decisivo do mundo atual pode ser resolvido sem a ajuda dos EUA», insiste a ex-secretária de Estado nos comícios das primárias, numa tentativa de desmontar os mitos alimentados por Trump e abordados por Sanders.
«A América continua a ser grande. Somos um farol de esperança e uma inspiração para todos os que querem seguir o caminho da Liberdade e dos Direitos Humanos. Nenhum problema decisivo do mundo atual pode ser resolvido sem a ajuda dos EUA», insiste a ex-secretária de Estado nos comícios das primárias, numa tentativa de desmontar os mitos alimentados por Trump e abordados por Sanders.
As piores
mentiras são aquelas que têm algum fundo de verdade.
E o modo
como Richard Ford, nas passagens mencionadas no início desta crónica, endereçou
o tema acaba por denunciar essa contradição.
O autor do
recente «Francamente Frank» pôs bem o dedo na ferida: não faz sentido falar-se
em «colapso da classe média» quando uma análise objetiva dos anos Obama mostra
uma recuperação espetacular nos principais índices económicos.
Muito menos
fará sentido decretar o «fim do sonho americano», quando vemos que os EUA
voltaram a ser aqueles que, nos anos pós crise, maior capacidade mostraram de
se reerguer.
O que se passa, então?
Mas também
não dá para ignorar o enorme desconforto que atinge o ambiente político,
mediático e social desta eleição presidencial de 2016.
Não, a culpa
não é só de Donald Trump.
O
«frontrunner» inesperado das primárias republicanas é a demonstração mais
visível de um problema muito complicado.
É também Ted
Cruz ser o segundo classificado – e já ter ganho tantos estados. É o falhanço
total e completo de candidatos mais «aceitáveis», como Jeb Bush ou Marco Rubio.
E é, sejamos
claros, o número incrível de estados que Hillary Clinton já perdeu para Bernie
Sanders.
Depois da
vitória folgada em Nova Iorque, não restaram grandes dúvidas: Hillary vai mesmo
ser nomeada.
O provável triunfo da antiga senadora Clinton na Pensilvânia, dia 26, será mais um fator de reforço desta tendência inexorável.
O provável triunfo da antiga senadora Clinton na Pensilvânia, dia 26, será mais um fator de reforço desta tendência inexorável.
A questão é
outra: Bernie, com o seu discurso duro, direto, cru e frontal, não para de
roubar votos à superfavorita e aproveitou estes meses de campanha para praticamente
anular a desvantagem enorme que tinha nas sondagens nacionais.
Uma nomeação
de Hillary pela via dos superdelegados, com uma vantagem muito curta nos
delegados por votação, pode ser coroação com sabor a pouco para quem
parecia ter tudo para, nesta corrida de 2016, beneficiar de uma auto-estrada
rumo à Casa Branca.
A situação
atual do lado democrata dá 1446 delegados eleitos para Hillary, para 1202 de
Bernie. A diferença manteria tudo em aberto se não fossem os superdelegados
(502 para Clinton, só 38 para Sanders).
Tudo somado,
os 1948 de Hillary dão-lhe um horizonte próximo dos 2.383 necessários para
chegar à Convenção de Filadélfia com a questão mais que resolvida.
O ponto, não
sendo matemático, é político: conseguirá Hillary «reconciliar» o eleitorado que
está a dar a Sanders uma caminhada histórica para quem parecia condenado a não
passar de um «outsider»?
Ou haverá mesmo o risco de uma percentagem significativa do «mundo Sanders» poder cair na tentação de votar Trump em novembro, em nome de uma suposta «insurreição anti políticos do sistema»?
Ou haverá mesmo o risco de uma percentagem significativa do «mundo Sanders» poder cair na tentação de votar Trump em novembro, em nome de uma suposta «insurreição anti políticos do sistema»?
Máquina de Cruz a fazer tremer
vantagem de Donald
Do lado
republicano, ganha cada vez mais força um cenário de confusão total para a
convenção do próximo verão, em Cleveland, Ohio.
Com 844
delegados, e a forte perspetiva de vencer a próxima batalha da Pensilvânia, Donald
Trump será, certamente, o candidato mais votado e com mais delegados até ao fim
destas primárias.
Mas as
probabilidades do multimilionário nova-iorquino conseguir chegar ao número
mágico de 1.237 delegados até ao fim destas primárias são cada vez mais
reduzidas.
Ted Cruz, o
senador texano que faz juras a Deus e insulta os políticos em Washington DC,
está a capitalizar ao máximo o «sentimento anti-Trump» e soma triunfos em
estados.
Cruz é
segundo, com 543 delegados obtidos por votação.
Mas a diferença
real entre Donald e Ted, quando se chegar à convenção republicana, pode ser bem menor do que os 301 que
separam neste momento os resultados de cada um.
Ted Cruz
está longe de ser uma figura querida pelo «establishment» republicano. Em
alguns temas, situa-se, até, mais longe ainda desse núcleo do que Donald Trump.
Mas a
política americana tem mistérios difíceis de antecipar.
A estranha aliança Cruz/Kasich
A estranha aliança Cruz/Kasich
Convém não
esquecer que os 171 delegados obtidos por Rubio (que depois da humilhação na
Florida suspendeu a campanha) não podem ser diretamente atribuídos a Cruz logo
numa primeira votação na convenção, mas terão peso importante numa eventual
segunda ronda.
Já em relação aos atuais 148 delegados somados pelo governador do Ohio, John
Kasich (que ainda está na corrida e promete aumentar esse número mais um
pouco), começa a ganhar força o cenário de Ted Cruz poder vir a aproveitá-los.
Em declarações feitas domingo à noite, as campanhas de Cruz e Kasich anunciaram que irão fazer «esforços conjuntos» nas primárias dos próximos três estados: no Indiana, Kasich apelará ao voto Cruz; no Oregon e no Novo México, será Ted a endossar o governador do Ohio.
A ideia é que, nesses três estados 'winner takes all', Donald Trump perca para o opositor com melhores condições de o travar.
Uma estranha aliança, no mínimo, tão grandes são as diferenças ideológicas entre o ultraconservador texano Ted Cruz e o moderado governador do Ohio (que até concorda com a Reforma da Saúde de Obama), John Kasich.
Em declarações feitas domingo à noite, as campanhas de Cruz e Kasich anunciaram que irão fazer «esforços conjuntos» nas primárias dos próximos três estados: no Indiana, Kasich apelará ao voto Cruz; no Oregon e no Novo México, será Ted a endossar o governador do Ohio.
A ideia é que, nesses três estados 'winner takes all', Donald Trump perca para o opositor com melhores condições de o travar.
Uma estranha aliança, no mínimo, tão grandes são as diferenças ideológicas entre o ultraconservador texano Ted Cruz e o moderado governador do Ohio (que até concorda com a Reforma da Saúde de Obama), John Kasich.
Moral da
história: Trump vai ser o mais votado, pode até chegar relativamente próximo do
número mágico (pelo menos passará dos quatro dígitos), mas um cenário de
«brokered convention» em Cleveland, com vontade assumida de vários setores do
Partido Republicano de barrar o caminho à nomeação de Donald, passou em poucas
semanas de puro «wishful thinking» a hipótese a considerar seriamente.
Nas últimas semanas,
houve sinais a reforçar este cenário.
A força de
Trump nas urnas é quase proporcional à sua fraqueza nas estruturas partidárias.
Donald perdeu para Cruz disputas na atribuição de delegados (65 em 94 só no
último sábado, com os 25 do Kentucky ainda por definir).
No Maine, de
20 que estavam em aberto, 19 foram para Cruz, só um para Donald; Ted somou mais
nove no Minnesota, único estado ganho nas urnas por Marco Rubio, ganhando mais
algumas «migalhas» noutros estados que tinham delegados em aberto.
Podem sobrar
dúvidas, no plano político, sobre o que se vai passar nas convenções e depois
em novembro.
Mas resta
uma certeza: ao contrário do que Trump está a dizer a multidões ávidas por uma
boa sanha persecutória, a América continua mesmo a ser grande.