quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Um ano após a vitória (V): O dia em que o Mundo abriu a boca de espanto


Texto publicado no site de A Bola/Outros Mundos, inserido na rubrica «Histórias da Casa Branca»:

http://www.abola.pt/mundos/ver.aspx?id=181742

O dia em que o Mundo abriu a boca de espanto

Faz hoje um ano, o Mundo abriu a boca de espanto. Não é que o resultado das eleições presidenciais não fosse o esperado: afinal de contas, todas as sondagens realizadas nos 20 dias anteriores apontavam a vitória de Obama. Só que a dimensão histórica do momento fez com que muitos tivessem preferido ver para crer.

Os dados estavam à vista e davam uma clara vantagem a Obama sobre McCain: a crise bolsista, o desemprego crescente, a vontade de mudança, a campanha bem mais eficaz do democrata. Mesmo assim, nos dias que antecederam a eleição, lá veio a teoria do 'Bradley effect', segundo a qual, na hora da votação, quem respondeu nas sondagens que iria escolher Obama poderia recear votar no «candidato negro».

Sucede que quem deu demasiada importância a essa tese se esqueceu de dois aspectos fundamentais. Por um lado, Obama não era um candidato negro tradicional. Mostrou-se, isso sim, nos quase dois anos de corrida eleitoral, um candidato «transracial», com enorme capacidade de captar votos em todos os segmentos. Por outro lado, Barack já havia sido escrutinado em todas as zonas da América, durante as primárias, e revelara-se muito forte em estados com percentagens de brancos acima dos 90 por cento.

E a 4 de Novembro de 2008, o que poucos meses antes parecia impossível tornou-se real: Barack Hussein Obama, terceiro negro a chegar ao Senado desde a Reconstrução, primeiro afro-americano a obter a nomeação presidencial de um grande partido do sistema, tornava-se o 44.º Presidente dos EUA, ao obter uma vitória claríssima sobre John McCain.

«Landslide»
Obama venceu em 29 estados, arrecadando mais de 70 milhões de votos expressos – de longe a maior votação de sempre (em números absolutos) de um Presidente americano. Em percentagem, a diferença também foi clara: 53% para Barack contra 46% de McCain e cerca de um por cento dos «terceiros candidatos». No Colégio Eleitoral (aquilo que realmente interessa para a eleição presidencial), Obama ficou com 365 Grandes Eleitores, contra apenas 173 de McCain – um 'landslide'.

A dimensão histórica do triunfo de Obama esteve longe de se esgotar na originalidade racial. Como candidato democrata, Barack conseguiu romper fronteiras que, nas últimas décadas, pareciam vedadas ao seu partido: arrecadou a Virgínia, estado que escapava aos democratas há 44 anos, vencendo ainda em terrenos muito difíceis como o Indiana, a Carolina do Norte, o Nevada e, claro, o Ohio (que se manteve como o melhor barómetro: desde John Kennedy, em 1960, que quem lá vence é eleito Presidente).

Barack Obama foi o primeiro democrata a obter a maioria absoluta do voto popular nos últimos 32 anos -- Bill Clinton foi eleito duas vezes sem nunca ter ultrapassado a fasquia dos 50 por cento e Jimmy Carter apenas atingiu 50,1%, em 1976.

O histórico triunfo de Obama baseou-se numa coligação de votações esmagadoras em segmentos que, até agora, ainda não se tinham juntado: 96 por cento dos negros, 68 por cento dos latinos, 66 por cento dos jovens, 56 por cento das mulheres. McCain venceu no eleitorado branco tradicional, mas por uma curta diferença: 54/46. Conclusão: o factor raça não só não prejudicou Obama como, na verdade, se mostrou favorável.

Ponto de viragem
Antes das primárias, o fenómeno Obama continuava por legitimar. O estado de graça do senador negro já durava há mais de três anos, desde o discurso na Convenção Democrata de 2004, mas pairava uma certa ideia, mesmo que não verbalizada, de… ‘isto não vai poder acontecer’. Ao arrebatar, folgadamente, um estado do Midwest, com 97 por cento de eleitores brancos, Barack provou que podia mesmo lá chegar. A partir desse momento, tudo mudou.

A eloquência de Obama começava a levar a melhor sobre o projecto sólido, mas demasiado colado ao passado, de Hillary. Do campo de Clinton, até havia quem lançasse o desabafo, perante os sinais de ultrapassagem de um Obama que parecia portador de um toque de Midas, que o problema seria que estas primárias se disputavam entre «uma senadora por Nova Iorque que nasceu no Illinois e um senador pelo Illinois que nasceu numa manjedoura...»

O poder retórico de Barack foi o catalisador da mais notável campanha de que há memória na política moderna: «É o melhor orador político desde Mario Cuomo. Melhor que Bill Clinton. Melhor que Reagan. É brilhante, de uma eloquência empolgante. Talvez só comparável a Martin Luther King», aponta Michael O’Hanlon, investigador do Council on Foreign Relations e antigo conselheiro da campanha de Hillary Clinton.

A «Obamania» foi crescendo e impressionava pela diversidade. Conquistou enorme popularidade na América, mas ainda maior no resto do Mundo: 75 mil pessoas num comício em Portland, Oregon, Costa Oeste americana; duzentas mil em... Berlim. Barack agarrou a tecla da «mudança» e da «esperança», num tempo de nuvens cinzentas em quase todos os campos: económico, social, moral.

A 4 de Novembro de 2008, numa noite fria de Chicago, Obama proclamou após a vitória: «All things are possible».

O que se tem passado desde que Obama entrou na Casa Branca, com o fantasma da decepção a persegui-lo em várias frentes, já é outra história – e será tema dos próximos dois textos. A gigantesca tarefa que pesa sobre os ombros do agora Nobel da Paz pode vir a dar razão ao ditado que avisa: «Cuidado com os teus sonhos, eles podem tornar-se realidade».

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