sexta-feira, 28 de junho de 2013

Histórias da Casa Branca: a nova estrada de Damasco

TEXTO PUBLICADO NO TVI24.PT, A 19 DE JUNHO DE 2013:


A questão síria está a acentuar a nova era dos equilíbrios geopolíticos nesta segunda década do século XXI.

A «contenção americana», sustentada não só nos cortes militares (até 2017, o Pentágono conta reduzir o seu orçamento para a presença americana no exterior em 250 mil milhões de dólares), está a acelerar o processo de «retraimento» assumido pelo Presidente Obama desde o primeiro mandato e aprofundado neste segundo. 

As más experiências do Iraque e, sobretudo, do Afeganistão (uma década de presença custosa a nível humano e financeiro em cenários particularmente hostis) retiraram boa parte do instinto bélico dos americanos.

Sucede que, mesmo com a prioridade política assumida de cortar gastos militares e reduzir a presença de efetivos no terreno, os EUA continuam a ser o ás de trunfo dos conflitos internacionais. 

A Cimeira dos G8, realizada na Irlanda do Norte, pôs à tona esta contradição. 

A «red line» atravessada por Assad, ao usar armas químicas contra o seu próprio povo, levaria, até há bem pouco tempo, a uma posição determinada do grupo dos oito mais ricos, no sentido de que, em sede de Nações Unidas, se avançasse para uma resolução de modo a aprovar uma intervenção militar contra o atual regime de Damasco. 

Mas os tempos recomendam outras vias. John Kerry, secretário de Estado dos EUA, chegou mesmo a ter declarações agressivas, referindo que «perante as provas de utilização de armas químicas, está fora de questão continuar a tentar uma solução política com Assad». 

Não se trata de ignorar a Síria. Naquela região, as potências mundiais não cometeriam o erro de falhar por ausência. Trata-se, isso sim, de influenciar sem arriscar a própria vida. 

Obama tem dado sinais de patrocinar o armamento dos rebeldes que combatem o regime de Assad (entre os quais já se contam muitos militares dissidentes das forças armadas sírias). Mas já toda a gente percebeu que os EUA não vão intervir diretamente. 

Depois, há a posição da Rússia. Na Cimeira do G8, Vladimir Putin não podia ter sido mais claro: Moscovo não avaliza a via americana de armar os rebeldes. «Para onde irão essas armas? Em que mãos irão parar?», questionou, irritado, o líder russo. 

Dias antes, o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, avisava a América e o Reino Unido que não contariam com a Rússia para a estratégia de armamento dos opositores de Assad, muito menos para a aprovação de uma «no fly zone»: «Não temos que ser grandes especialistas para percebermos que isso violará as leis internacionais».
O clima de «aproximação» entre EUA e Rússia, em que muitos acreditaram nos anos que se seguiram ao fim da Guerra Fria, há muito que terminou.

A Administração Obama não tem o mínimo interesse em conceder a posse de bola à Rússia no jogo sírio. Mas vai esgotar ao limite a hipótese de controlar a partida sem ter que suar muito. 

Como muito bem explicou Jorge Almeida Fernandes no «Público», «Se a América já não pode tudo, ninguém faz nada sem ela. (¿) A viragem desencantada dos EUA parece traduzir uma lucidez fatalista de Obama». 

Pode parecer «demasiado pouco e demasiado tarde», mas é o realismo levado ao limite que Obama escolheu para o segundo mandato.

domingo, 16 de junho de 2013

Histórias da Casa Branca: Síria, o teste para a contenção americana

TEXTO PUBLICADO NO TVI24.PT, A 14 DE JUNHO DE 2013:


O Mundo está perigoso e cada vez mais imprevisível: Síria, Istambul, Grécia, São Paulo.

Estamos a caminhar para a era da incerteza global e seria, por isso, de esperar que uma ordem internacional clara e pronta a atuar pudesse responder nos momentos de perturbação.

Sucede que o caminho é precisamente o contrário. 

Apesar de ainda serem, de longe, a maior superpotência militar, os Estados Unidos estão cada vez menos interessados em intervir, com forças operacionais no terreno, em território estrangeiro.

No primeiro mandato, Barack Obama apontou as decisões políticas para a retirada militar do Iraque e do Afeganistão. E nem hesitou em inaugurar posições novas na influência americana, ao colaborar sem liderar («leading from behind») na intervenção na Líbia e ao deixar as despesas de combate no Mali para os franceses. 

O tempo em Washington é de regressar a casa («nation building at home») e a vontade política da Administração Obama em avançar para aventuras militares que pudessem implicar perdas humanas e gastos de guerra elevados é quase nula. 

É neste contexto que se compreende a passividade dos EUA em relação ao que está a acontecer na Síria. 

Ontem, a Administração Obama confirmou que tem indicações de que o regime de Assad utilizou armas químicas contra os rebeldes. 

Não há muito tempo, essa seria a «red line» que, a ser atravessada, justificaria uma intervenção da comunidade internacional, no quadro da ONU e com a participação operacional da NATO.

Em Bruxelas, o secretário-geral da NATO, Anders Fogh Rasmussen, não podia ser mais perentório: «A comunidade internacional já deixou claro que qualquer uso de armas químicas é completamente inaceitável e uma clara violação da lei internacional».

Mas nos dias estranhos que correm, o interesse de EUA e aliados em avançar para a Síria é muito reduzido. 

A retórica da Administração Obama em relação a este tema subiu de tom consideravelmente nos últimos dias. 

A visita do senador John McCain, um dos mais experimentados políticos de Washington neste tipo de terrenos, à Síria acelerou uma mudança na avaliação americana em relação a este problema. A noção de que não dava para continuar a assobiar para o lado foi muito maior.

A confirmação de que Assad utilizou mesmo gás sarin contra os rebeldes foi a gota de água que fez transbordar o copo. 

Nas últimas duas semanas, Barack Obama fez questão de ouvir os seus mais importantes conselheiros de Segurança Nacional e Defesa. Chuck Hagel, chefe do Pentágono, não queria um endurecimento, mas as opiniões de John Kerry, secretário de Estado, e Susan Rice, a recém-nomeada Conselheira de Segurança Nacional, terão sido decisivas para que Obama evoluísse a sua posição para um apoio mais direto dos EUA ao armamento dos rebeldes e à imposição de uma «no fly zone». 

Mas que ninguém pense que veremos soldados americanos a morrer em Damasco daqui a uns meses.

A nova liderança americana terá, na crise síria, mais uma demonstração da visão Obama sobre estas questões: os EUA vão patrocinar um reforço de armamento dos rebeldes. Mas as questões sírias devem ser resolvidas entre os sírios.

O discurso que o Presidente Obama se prepara para proferir sobre a situação na Síria deverá confirmar estes sinais.

Bem-vindos aos anos do realismo levado ao limite.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Histórias da Casa Branca: «Big Brother» ou administração amiga?

TEXTO PUBLICADO NO TVI24.PT, A 12 DE JUNHO DE 2013:

«Nós, o Povo dos Estados Unidos, a fim de formar uma União mais perfeita, estabelecer a Justiça, assegurar a tranquilidade interna, prover a defesa comum, promover o bem-estar geral, e garantir para nós e para os nossos descendentes os benefícios da Liberdade, promulgamos e estabelecemos esta Constituição para os Estados Unidos da América».
Parágrafo inicial da Constituição dos Estados Unidos da América


A citação do parágrafo inicial da Constituição dos EUA lembra-nos que todo o sistema de poder na América está baseado num princípio sagrado: o de que o poder provém do povo é cedido (apenas cedido) pelo povo aos seus representantes políticos.

Esse pressuposto é fundamental para que se perceba a mentalidade dominante naquele país. O respeito pelos direitos individuais nos EUA, tendo estes a primazia sobre a autoridade do Estado, não tem equiparação em qualquer outro sistema política no Mundo.

É neste ambiente que se devem analisar as recentes polémicas em torno de eventuais violações da privacidade admitidas pela Administração Obama, em programas de vigilância que visam combater novas ameaças terroristas.

O tema é obviamente delicado para o Presidente. No final 2007, em plena campanha para as primárias democratas, Barack Obama teceu fortes críticas ao então Presidente Bush por permitir eventuais intromissões na privacidade dos cidadãos, em nome de mais segurança.

Ora, foi precisamente o argumento de «um pouco menos de liberdade, para termos a segurança necessária» que Obama utilizou nos últimos dias para explicar aos americanos as notícias que falavam de escutas e acesso a dados confidenciais de milhões de cidadãos.

O caso ficou mais complicado para o Presidente quando foi revelado o «Garganta Funda» deste caso: Edward Snowden, um antigo funcionário do Google, que entretanto se mudou para Hong Kong.

Jay Carney, porta-voz da Casa Branca, foi vago na resposta às perguntas dos jornalistas sobre as investigações: «Não vou falar sobre o decorrer dessas investigações. Muito menos irei falar sobre pormenores do indivíduo em causa.»

A estratégia de controlo de danos da Casa Branca, em relação a este tema, passa por afastar o Presidente do odioso de patrocinar um programa obviamente polémico e colocar no centro das operações o Departamento de Justiça e a CIA.

Estudo recente mostra que a maioria dos americanos considera razoável que se abdique de alguma privacidade, desde que isso aumente a segurança.

De acordo com sondagem do Pew Research Center, 56% dos americanos considera «aceitável» o acesso da NSA aos registos telefónicos de milhões de americanos sem o seu conhecimento, em nome da segurança e do combate ao terrorismo. Apenas 41% dos americanos inquiridos considera essa prática «inaceitável».

Certo, certo é que o tema da vigilância do Estado sobre os cidadãos passou a estar na ordem do dia na América. Com um dado muito curioso: nos últimos dias, as vendas do «1984», livro em que George Orwell imagina um «Big Brother» que supervisiona todas as ações dos cidadãos, dispararam em flecha (quase 7000%!).

Mesmo com o apoio da opinião pública, Barack Obama sabe que a vigilância dos cidadãos nunca é um tema fácil. E certamente que o Presidente quererá sacudir a questão da agenda mediática.

A ala conservadora do Partido Democrata começa a exigir a demissão de Eric Holder, responsável pelo Departamento de Justiça. Mas uma demissão política seria sinal de fraqueza do Presidente, se atendermos ao facto de que Obama mostrou sempre estar de acordo com o caminho seguido pelos seus serviços de informação.

Tão poucos meses depois da reeleição, no segundo mandato, para bandeiras menos populares, os escândalos das últimas semanas ameaçam ensombrar o segundo mandato.

Até quando?»

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Histórias da Casa Branca: a nova luta antiterrorismo

TEXTO PUBLICADO NO TVI24.PT, A 3 DE JUNHO DE 2013:

«Se a luta antiterrorista deve continuar, esta guerra tem de acabar. Os EUA não podem viver em estado permanente de guerra»
BARACK OBAMA, discurso na National Defense University, 26 de maio 2013

A luta contra o terrorismo está a mudar. Nas últimas semanas, assistimos a alguns casos inesperados e que podem alterar a noção de como se deve combater as ameaças de quem fazer mal à nossa forma de viver nas sociedades ocidentais. 

Após a morte de Bin Laden, ficou claro que a Al Qaeda, enquanto organização global, estava em desagregação. 

Mas isso não quer dizer que o terrorismo tenha terminado ou, sequer, que esteja a recuar. 

A questão, essa sim, é que está a mudar a sua configuração e a sua concretização. 

Na sociedade espartilhada em que vivemos, já não há uma liderança única: seja ao nível dos governos, seja no plano das organizações. E isso vale, também, para o terrorismo. 

Em Boston, a 15 de abril passado, foi brutalmente surpreendente perceber como dois irmãos tchechenos puderam perpetrar um ato terrorista de dimensões surpreendentes. 

O assassinato a sangue frio, em plena rua e à luz do dia, num bairro de Londres, de um jovem soldado britânico que tinha combatido no Afeganistão, foi outro sinal de alarme para esta nova forma de ameaça terrorista: menos espetacular, menos global, mas se calhar mais assustador, porque completamente imprevisível. Pode acontecer em qualquer lado e a qualquer momento.

Obama assumiu uma visão, no primeiro mandato, que apontava para uma mudança do «idealismo» para o «realismo». Redução de meios e gastos de guerra; retirada do Iraque e do Afeganistão; presença discreta (e sem liderar) na Líbia; contenção em vez de intervenção na Síria.

Em vez de «guerra pesada», preferiu o «soft power». Apostou na tecnologia, incentivou a «guerra de espionagem», avançou para os «ciberataques» aos planos do Irão para fazer a bomba e às ameaças chinesas de entrar nos sistemas informáticos americanos. 

Adepto de uma visão «contida» do uso do poder militar americano, Obama apontou uma via de redução de perdas humanas no terreno e aposta clara nos «drones» (aviões militares não tripulados, capazes de, por via de controlo à distância, estabelecer ataques cirúrgicos a alvos potencialmente ameaçadores).

Mas nem tudo tem corrido bem neste caminho. 

Na promessa de restabelecer a imagem moral da América, Obama assinou o fecho de Guantánamo no dia seguinte a ter tomado posse pela primeira vez. Passaram-se quatro anos e meio e a verdade é que a prisão na baía cubana ainda está aberta. 

E essa é uma verdade inconveniente que pesa nos ombros do 44.º Presidente dos EUA e que foi recordada, a decibéis particularmente elevados, por uma pacifista que o interrompeu em pleno discurso sobre antiterrorismo, na National Defense University.

Nesse discurso, Obama defendeu o uso de drones para combater o terrorismo como «uma guerra justa» e até como forma de «auto-defesa». 

E explicou: «À luz das leis internas e internacionais, os Estados Unidos estão em guerra com a Al Qaeda, os talibãs e as suas forças associadas. Estamos em guerra com uma organização que neste momento mataria o maior número possível de americanos se não os impedíssemos primeiro. Portanto, esta é uma guerra justa, travada de forma proporcional e, em última instância, em auto-defesa».

Ao mesmo tempo que relegitimou essa via de utilização de drones, Obama reforçou que os ataques com aviões não tripulados «salvaram vidas» e «são legais».

Sobre Guantánamo, Obama voltou a defender o fecho da prisão e culpou o Congresso de isso ainda não ter acontecido: «Não há qualquer justificação, para além da política, para o Congresso nos impedir de fechar umas instalações que nunca deveriam ter sido abertas».